Literatura, Literatura infantojuvenil,

Dizer o invisível

Tino Freitas e Odilon Moraes contam a história de um menino que tinha o superpoder de enxergar as diferenças e abraçar a alteridade

01out2021 | Edição #50

Era uma vez um menino, com capa de super-herói, que tinha o poder de ver invisíveis. Ele era o único de sua família que podia. O pai, a mãe, o avô e a avó andavam pela mesma cidade que o menino, mas não percebiam as pessoas que cruzavam seus caminhos nem se davam conta de como a cidade tinha gente diferente deles. Esse menino doce do superpoder ainda conseguiu se mostrar para Tino Freitas e Odilon Moraes, que, juntos, numa dança sensível, nos contam sua história.

É urgente que possamos nos relacionar, cada vez com mais força, com todas as sutilezas que encontraram lugar no texto tecido entre palavra e desenho de Os invisíveis. Gosto de pensar que foi por causa dessa urgência que o livro, originalmente publicado em 2013 (pela Casa da Palavra, com ilustrações de Renato Moriconi), tenha ganhado uma reescrita em uma edição nova e caprichada pela Companhia das Letrinhas.

O mundo do menino era bem maior do que o dos seus adultos: tinha mais gente, mais história, mais variação e complexidade. E, entre tantas complexidades que cercam a experiência de viver, o menino bem cuidado vez por outra também se percebia invisível para seu pai e sua mãe, abduzidos cada um em uma tela. A gente fica triste quando escuta a solidão do garoto na sala de estar e, com essa tristeza, ganha a oportunidade de pensar como temos cuidado do tempo sob a lógica do espaço único que a crise sócio-sanitária nos jogou no Brasil da Covid.

Sentir a invisibilidade

É bem capaz que tenha sido a partir da possibilidade de ser, ele mesmo, invisibilizado que o menino tenha podido dar lugar às variações e à diversidade da experiência da vida no seu caminho. E foi sendo assim que seguiu: foi para a faculdade, arrumou emprego e conheceu o amor. A família aumentou, a vida andou, e o menino, crescendo, perdeu seu superpoder “alargador de mundo”. Entre os acontecimentos importantes na vida do menino, há também a hora em que a família diminuiu. E dar lugar à morte, nesse livro, é fazer o leitor escutar que as crianças percebem a vida e seus movimentos, os sutis e os bruscos, e nós, nesse contexto, devemos lhes oferecer lugar, escuta, perguntas de abertura e, com sorte, palavras nomeadoras para bordar os acontecimentos.

Intuitivamente, todos que vivemos perto de crianças sabemos que elas se relacionam com a vida de uma forma diferente da experimentada pelos adultos: percebem nossas tristezas e os assuntos que evitamos, e também podem rir (e nos fazer rir) de coisas que nem tínhamos notado. Elas são capazes de se espantar com detalhes que nossa pressa de harmonia e nossa ansiedade por estabilidade nos obrigam a considerar irrelevantes. As crianças são especialistas em fazer um adulto desligar o piloto automático e se deter nas bonitezas e nas estranhezas do viver.

Alain Didier-Weill, psicanalista francês, falou disso muito bem ao dizer que as crianças sabem sobre si e sabem sobre o mundo que habitam de um jeito diferente porque suportam melhor as descontinuidades e as hiâncias que os adultos suturam com muitos recursos, e entre eles, sabemos, está a invisibilização da diferença, a negligência para com a diversidade e o ataque à experiência em alteridade. As crianças confrontam nossas negações precárias que permitem desver o percebido.

Para poder conviver com os outros, é fundamental contar com crianças para tornar visível o invisível

Nesse sentido, é fundamental desinvisibilizar um aspecto tão crucial no livro quanto sua possibilidade de levar as crianças a sério. Já está dito que os autores não recuaram diante de muitas das invisibilidades que habitam nosso tecido social: estão retratadas e marcadas pelo corte de classe que, aqui, alude também à raça como marcador dessa construção. O etarismo está apresentado e, na escolha precisa das palavras, o campo da deficiência também ganha lugar para fazer trabalhar nossa proposta de diversidade ainda tão seletiva.

Não me lembro de outra situação em que os humanos incapazes de perceber o outro não fossem, rapidamente, adjetivados como cegos. Em Os invisíveis, não são. Os adultos, aqui, são fechados em si mesmos e, assim, negligentes com o outro. Isso é importante porque os traços e o funcionamento de um corpo não podem ser usados para dizer das fraquezas da humanidade. Além de ser abusivo, ao fazer desaparecer muitos corpos, encurta o mundo de todos.

É verdade que o menino doce com capa de herói, ao envelhecer, perdeu lugar neste mundo de exclusões que habitamos… Mas também é verdade que apareceu uma criança no meio do fim do seu caminho. Por tudo isso, e para que possamos viver com os outros, com todos os outros — os de perto, os de longe, os que entendemos que são parecidos, os que são diferentes, os que vivem de formas diversas, os que amamos e os que nem conhecemos —, é fundamental que possamos contar com as crianças para tornar visível o invisível. E que, junto com elas, possamos encontrar um jeito de dizer o indizível, como fizeram esses adultos de agir criançável, Tino e Odilon. 

Nota da autora
“Agir criançável” é uma expressão linda que aprendi com Cristina Vicentin.
Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Ilana Katz

É psicanalista e pesquisadora do Latesfip da USP.

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.