Alimentação, Literatura infantojuvenil,

Da lama ao caos

Livro do artista John Cage e da designer Lois Long aborda os prazeres de brincar de fazer tortas e bolos

01out2022

Em 1952, um dos grandes artistas do século 20, o estadunidense John Cage (1912-92), compôs uma peça musical de quatro minutos e 33 segundos que não tem música. Só silêncio. Ele também escreveu o livro de culinária Livro da lama: como fazer tortas e bolos, em que não há comida. Só brincadeira.

Lançada no Brasil pela editora Amelì, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza, a obra de Cage e de sua amiga Lois Long (1918-2005), uma designer têxtil especialista em fungos, ensina a fazer uma torta de lama e um bolo de camadas, que intercalam lama e pedrinhas e que, ao final, são feitos para “olhar e gostar”, e não para comer. Estimula, portanto, a capacidade das crianças de fazer e admirar.

Em suas páginas, ilustradas com desenhos encantadores e assimétricos que representam o trabalho recreativo com a argila, estão embutidas noções de proporção e o reforço do contato manual com os ingredientes. Estes não aparecem listados separadamente, mas surgem integrados ao modo de fazer numa narrativa única, comum aos primeiros receituários impressos.

O mérito do livro é apresentar o processo completo. Trata das medidas, das misturas e de seus momentos oportunos; dos obstáculos, com dicas de como superá-los; dos processos de cocção e dos tempos necessários para que se faça uma comida — que aqui é arte, à semelhança do que se encontra na cozinha dos grandes chefs.

Os autores voltam-se às formas mais primitivas do brincar — água e terra — e lhe dão uma base culinária

A diferença é que na cozinha artística parte-se da inspiração, criação e expressão, da qual emana o novo, e, no Livro da lama, de uma receita que tende a ser repetida, como um trabalho tradicional, aprimorado a cada vez que é executado, como um ofício manual — embora aberto às imperfeições e ao trato particular que cada criança lhe dá. O intuito, porém, é o mesmo: suscitar felicidade.

Prazer

O livro é surpreendente ao levar em conta que os autores são norte-americanos, vindos de um país marcado pela formação puritana anglo-saxã em que o prazer em qualquer área é pecaminoso. O que inclui a comida, vista nessa cultura apenas como nutriente — como os animais a consideram. Para os humanos, no entanto, é fonte de prazer, cultura, confraternização. E diversão. Que o digam as crianças — quem nunca brincou de fazer bolos de lama ou de chá de bonecas? Uma cultura que não entende a comida e outros prazeres cria crianças com o norte monástico da disciplina, da objetividade, da produtividade. Crianças que, uma vez adultas e autônomas, podem buscar a diversão perdida de forma tardia e perigosa — com bonecas de carne e osso ou armas de verdade.

O Livro da lama leva as crianças a sério. Os autores voltam-se às formas mais primitivas do brincar — água e terra — e lhe dão uma base culinária, como se ajudassem a estruturar a brincadeira e aproximassem a criança da capacidade de mimetizar o comportamento do adulto, e com ele aprender. Os autores, ligados a uma arte livre, aberta e experimental, usam desenhos infantis e poucas palavras. Não fazem discurso. Brincam com, e como, crianças.

Mas é como se alertassem: crianças que brincam com comida poderão, no futuro, como profissão ou lazer, também usar, ludicamente, a criatividade. E transformar essa urgência biológica em arte, prazer e diversão.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Luiza Fecarotta

É crítica e curadora gastronômica.