Literatura infantojuvenil,

Da cor da meia-noite

Livro de estreia da atriz Lupita Nyong’o trata de colorismo ao narrar história de garota humilhada na escola por causa do tom de sua pele

01mar2021 | Edição #43

Há livros que nos encantam, não somente pela qualidade da capa, pelo tipo de papel ou pelas ilustrações, mas pelo conteúdo trazido à tona a partir da vastidão profunda de uma experiência de vida. É o que faz a atriz queniana Lupita Nyong’o em seu livro de estreia, Sulwe, ilustrado por Vashti Harrison (responsável pelas ilustrações de Amor de cabelo, de Matthew A. Cherry) e que chega ao Brasil pela Rocco Pequenos Leitores. 

“Sulwe nasceu com a pele da cor da meia-noite.” É assim que se inicia a obra, acompanhada por uma ilustração belíssima que retrata uma menina negra em pé sob o céu escuro e estrelado, numa perspectiva de quem está perdido na profunda grandeza do ser. Já no primeiro parágrafo, a autora — que ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante em sua estreia no cinema em 12 anos de escravidão (2013) — destaca sua intenção de, a partir de uma experiência pessoal, tratar de um tema marcante na vida de pessoas negras: o colorismo.

O colorismo está diretamente relacionado ao racismo estrutural desde os tempos da escravidão, base para o desenvolvimento econômico e social em países colonizados, onde mulheres negras com a pele mais clara eram eleitas para o trabalho doméstico, enquanto aquelas com a pele mais escura eram destacadas para os trabalhos nas plantações. Tal “diferença” hierarquizante entre os tons da pele negra está muito presente na literatura brasileira, reforçando os estereótipos raciais. É comum que a palavra politicamente incorreta “mulata” apareça se referindo à mulher negra de pele clara que desperta a libido masculina — portanto, boa para as relações sexuais (como se isso fosse algo positivo). Já essa mulher negra de pele escura que surge na literatura nacional desperta nos homens a repulsa — ou seja, é boa para os trabalhos braçais.

Além do colorismo, a obra traz o questionamento sobre estereótipos e o resgate da autoestima

No decorrer da história de Lupita, vemos Sulwe observar as diferenças entre os tons da pele negra dos integrantes de sua família e questionar o fato de ter o tom mais escuro que o de sua mãe, seu pai e sua irmã. “Querido Deus, por que eu tenho a cor da meia-noite se minha mãe tem a cor da aurora?” Sonhava em ser clara como a irmã só para ser bem tratada pelos colegas da escola, já que eles davam a ela apelidos vexatórios. Por causa disso, Sulwe se transformou em uma criança retraída, que passou a colocar em prática planos mirabolantes para tentar ficar mais clara. Percebendo a tristeza da filha, a mãe foi ter com ela uma conversa séria, o que facilitou o desabafo da menina. Por mais que a mãe tenha lhe dito quanto era bonita, não foi o suficiente para fortalecer sua autoestima. 

Encantamento

Qual a solução encontrada por Lupita? Concluo que a autora buscou o encantamento enquanto categoria de análise possível no campo da literatura infantil ao narrar um mito, pertencente a várias culturas tradicionais ao redor do planeta, como a do povo indígena karajá (Brasil) e a do povo iorubá (Nigéria), que retrata a história das irmãs Dia e Noite. No caso da história em questão, a mensageira do reconto desse mito é uma Estrela (que no tarô significa proteção e a possibilidade de realização dos sonhos e que é o significado de “sulwe” na língua luo), que surgiu no quarto de Sulwe convidando-a para uma viagem ao espaço, na qual ela explica o valor das irmãs Dia e Noite. Ao voltar da viagem, Sulwe se encontra transformada, reconhecendo seu valor e brilho: “Sulwe se sentiu linda por dentro e por fora!”. Ela retorna, então, empoderada após a “jornada da heroína”, tal como apresentada por Clyde W. Ford em seu livro O herói com rosto africano: mitos da África (Selo Negro Edições, 1999). 

É fundamental ressaltar que, juntamente com o tema do colorismo, também surgem o questionamento de estereótipos e o resgate da autoestima. Estes são revelados por meio da pressuposição entre os sentidos da semiótica — conteúdo, planos de signo e expressão — presentes nas oposições binárias (claro vs. escuro, dia vs. noite, branco x preto), típicos da forma quadrangular e encaixotada de enxergar as coisas e suas relações com o universo nas sociedades ocidentais.

Essa obra é fundamental para integrar acervos de livros em todo o país, além de ser pauta essencial para as lutas antirracistas, a ser discutida amplamente com crianças e jovens; afinal, as jornadas dos heróis e heroínas são vividas também nas infâncias.

Este texto foi feito com apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Kiusam de Oliveira

Pedagoga, escreveu O black power de Akin (Editora de Cultura).

Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.