Literatura infantojuvenil,

Como nascem as palavras?

Ao criar a cidade de onde a linguagem brota, autoras dão vida a uma pergunta recorrente das crianças

01mar2024

Quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1993, Toni Morrison escreveu que “só a linguagem nos protege do terror das coisas sem nome”. A autora norte-americana não conhecia a cidade de Eudice. E nem poderia. Essa cidade existe desde muito, mas só agora é narrada, em texto e em imagem.


Eudice, de Carolina Delboni e Lumina Pirilampus, oferece aos mediadores a oportunidade de pensar a linguagem como objeto comum

O livro de Carolina Delboni e Lumina Pirilampus inventa para os leitores um endereço comum: o fantástico reino de Eudice. Mais que um cenário onde esta história se passa, é o lugar onde todas as histórias começam. É lá que as palavras dão o seu primeiro suspiro, antes de ganhar corpo, se esticar por aí e alcançar os dicionários. Graças a Eudice, não precisamos suportar o terror de que falou Morrison, o de não conseguir nomear alguma coisa por falta de palavra.

Educação e arte

Educadora e especialista em comportamento adolescente, Carolina Delboni faz sua estreia na literatura voltada às crianças unindo dois universos por onde ela tem circulado na última década: a educação e, mais recentemente, a infância. O mote para o livro surgiu da pergunta de um aluno: “como nascem as palavras?”.

No recém-publicado Poder, voz e subjetividade na literatura infantil (Perspectiva, 2023), traduzido por Camila Werner, a renomada teórica russo-sueca Maria Nikolajeva diz que, por mais artística que a literatura possa ser e é, não conseguimos negar o propósito pedagógico que também a alimenta. “Toda literatura é ambos”, isto é, “tanto uma forma de arte quanto um veículo didático”. Para Nikolajeva, trata-se de dosar a quantidade. “É uma questão de intensidade, não de natureza”, ela afirma.

Eudice, ao narrar para as crianças uma espécie de elaborarção artística para perguntas familiares às infâncias — “Onde?” “Por quê?, “Como?” — que vivem querendo saber de onde vêm as coisas, não só acolhe a conexão entre arte e educação, mas a potencializa.

As ilustrações, assinadas pela arte-educadora Lumina Pirilampus, compõem uma ambiência de realismo mágico habitado por seres míticos e objetos oníricos, como peixes cheios de pernas, flores animadas e sacis-pererês voadores. Celebrando a sonoridade das palavras, a música está presente também nas imagens, com jacarés flautistas, sereias sanfoneiras e gatos batuqueiros. A narração imagética evoca a infância como criação subjetiva e valoriza o caráter mutante da língua, das raízes diversas às suas transformações cotidianas.

Quando a linguagem pode ser recriada, afastamos o horror das coisas sem nomes

Ao iniciar as crianças nas categorias gramaticais da língua portuguesa e suas múltiplas influências culturais, a obra pode ser lida como livro informativo; nas rimas e nos jogos poéticos, a fruição é de um poema ilustrado; pela articulação entre imagem e texto, pode ser um conto verbo-visual. Ao comportar essas e outras possibilidades, a narrativa é aquilo que o leitor fizer dela.

Em sociedades que colocam a palavra em um campo de disputa, e com elas criam guerras, polarizações e pós-verdades, conhecer a cidade de Eudice é como tirar férias do mundo adulto — esse ponto em que o discurso já está fatigado — e voltar a ser criança. Aqui, a infância não é um período cronológico, mas um modo de estar, eternamente disponível.

Nesse sentido, o livro oferece aos mediadores a oportunidade de pensar a linguagem como objeto comum. O que fazemos com esse objeto? Na tentativa de desviar do horror das coisas sem nome, o que será que produzimos? Os habitantes de Eudice inventam cortejos coloridos — “a festa mais vistosa desta terra”. “O povo é tão curioso pra saber como nascem as palavras que em dia de festejo vem gente de toda a redondeza.”

‘Invencionática’

Está na tradição dos poetas populares recusar a existência meramente dicionarizada das palavras. Manoel de Barros invoca muitos nomes para esse exercício poético: invencionática, mundividência, transvisão. O livro de Carolina e Lumina está carregado de uma intenção similar, a de ver nas palavras não apenas o que elas significam, mas as histórias que contam.

Na cidade fantástica inventada pela obra, as palavras são narradas como entidades com vida própria e, muitas vezes, uma alma confundida, assim como nós. Algumas grudam em outras e já não sabem quem são: “boquiaberta”, “planalto”, “pernalta”. Outras têm almas gêmeas: “pula-pula”, “pisca-pisca”, “gira-gira”. Muitas palavras se acostumaram a existir ao lado de outras: “arco-íris”, “guarda-chuva”, “arranha-céu”.

Ao leitor, cabe a percepção de que nenhuma dessas histórias é a única, e a cada leitura é possível inventar outras: a linguagem é viva e recomeça a cada uso. E dá-lhe palavrão para acomodar a existência de tantas linguagens possíveis dentro de um mesmo alfabeto comum: “jiripoca”, “cambalacho”, “siricutico” e “pandemônio”.

Seja criança ou adulto, o leitor de Eudice é instigado a criar um senso de empatia pelas palavras. Em comum com elas, nós todos temos a impossibilidade de controle, por mais que a linguagem se organize em torno de um código comum. Se, como diz o livro, “não tem placa nem direção que dê conta dessa multidão”, só nos resta encontrar diversão na brincadeira de recriá-la todos os dias.

“Em Eudice ninguém usa palavra para guardar. Todos usam a palavra pra fazer cintilar, é o jeito que se encontrou de festejar e ninguém pestanejar.” Para nos lembrar que quando a linguagem pode ser recriada afastamos o horror das coisas sem nome.

Quem escreveu esse texto

Renata Penzani

Jornalista e pesquisadora do livro para a infância, é autora de A coisa brutamontes (Cepe).