Literatura infantojuvenil,

A perda de si mesmo

Nova parceria de Olga Takarczuk e Joanna Concejo trata do apagamento da subjetividade em uma sociedade digital

27set2023 | Edição #74

Notável é o poder de uma fábula. A escritora Olga Tokarczuk reconhece tal força: “É espantoso como pode ser tranquilizador e catártico mergulhar no mundo da infância”. Juntas, as palavras “tranquilizador” e “catártico”, em sua própria alquimia, dão o tom da experiência proporcionada por Um senhor notável, segunda colaboração da autora com Joanna Concejo, ilustradora polonesa com quem já havia trabalhado em A alma perdida.

Com uma linguagem “calma”, comedida em palavras e justa na construção de imagens poéticas, Tokarczuk e Concejo abrem espaço para um senso de maravilhamento, cultivando um sabor de “era uma vez” para abordar algo central nos interesses da vencedora do Nobel: os valores humanos fundamentais e a busca pela essência dos seres vivos. Nessa fábula contemporânea, a dança gira em torno do valor da singularidade, um atributo aqui construído (e alterado) tanto pelo olhar de si quanto pelo olhar do outro.

A história aponta as consequências simbólicas dos excessos, sendo a maior delas a perda de si mesmo

Logo somos recebidos pela narrativa visual em um convite expresso ao leitor: não corra para o texto, há algo desde já a ser descoberto, contemple. Feita essa primeira travessia chegamos às palavras e conhecemos a história de um homem muito expressivo, o Senhor Aparecido, sujeito de traços marcantes que é reconhecido pela comunidade que adora seu rosto, mesmo sem saber muito sobre ele. Algo muda quando esse homem compra um telefone de última geração e, fascinado por tirar selfies (e pelo próprio rosto), se vê em apuros com um efeito inesperado e terrível: quanto mais selfies ele tira, mais seu rosto se apaga. O impasse está erguido: quanto mais imagens produzir de si mesmo, mais de afastará de um rosto real.

Tomado pelo conflito entre o desejo da autoimagem e o desejo do olhar do outro, Senhor Aparecido parte em uma busca que acabará por revelar uma sociedade assustadoramente igual a ele, fazendo da radical semelhança entre os humanos uma segunda forma de apagamento. “Quero ficar nítido de novo”, ele diz em dado momento. “É o que todos querem”, recebe em resposta.


Um senhor notável é sobretudo um aceno à imaginação, pontuando a falta de criatividade do olhar (de si, do mundo) como a origem de todo apagamento

As ilustrações de Concejo, criadas com lápis grafite, lápis de cor e guache, propõem um percurso particular pela vida do personagem. Encontramos uma espécie de álbum de família com registros de um bebê que nasce, uma criança que cresce, um jovem que se desenvolve, para logo então sermos testemunhas de um homem já adulto que, diante do espelho, soma outros espelhos: o de suas próprias fotos. O passar das páginas funciona, então, como a passagem do tempo, deixando o realismo e a nitidez para trás e fazendo do corte, dos pixels e da ausência da figura humana uma afirmação visual muito própria de toda a construção.

Narciso

Em uma revisita ao mito de Narciso e à mitologia grega que tantas vezes encenou o perigo de se entregar desmedidamente a um fascínio, essa história traz para o presente do universo digital as consequências simbólicas dos excessos, sendo a maior delas a perda de si mesmo. Guardando em seu bojo perguntas fundacionais como “quem serei eu entre tantos outros eus?”, o livro traça uma importante meditação sobre identidade e formas contemporâneas de vida.

Um senhor notável é sobretudo um aceno à imaginação, pontuando a falta de criatividade do olhar (de si, do mundo) como a origem de todo apagamento. Ao fabular a busca por um rosto próprio, também trata de um desejo humano ainda mais profundo: o de que a vida não se esvaia pelo caminho, distraída daquilo que mora na diferença e no singular.

Quem escreveu esse texto

Juliana Leite

Escritora, é autora de Humanos exemplares (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.