Literatura infantojuvenil,

A libertação dos cabelos

Ao abordar penteados para cabelos crespos em novo livro, Kiusam de Oliveira ajuda a curar antigas feridas e construir outras realidades

01out2021 | Edição #50

E, de novo, eu me encontro com aquela menina. Seus olhos arregalados diante da sua própria imagem no espelho do salão de cabeleireiro indicavam vergonha. Como ela sairia dali, mais uma vez, com aquele corte “Chitãozinho e Xororó”, que era tão comum no início dos anos 90, mas que não combinava em nada com o seu cabelo crespo? Foram longos anos neste ciclo: corte, vergonha, “tomara que cresça logo”, amarrar. Naquela época, não se conheciam muitas referências de cortes para cabelos crespos. Aquela menina cresceu e experimentou outros métodos tão danosos para si e para o seu cabelo quanto aquele corte desajustado. Foram longos anos em outro ciclo: relaxamento, alisamento, amarrar, frustração — “poxa, nada dá jeito!”.

Essa menina, essa jovem, era eu.

Felizmente, durante esses ciclos, eu passei pelo meu processo de reconhecimento racial enquanto negra — o que culminou na libertação dos meus cabelos: eu não precisava mais negar, esconder, disfarçar quem eu era e os traços da minha negritude. Então, vieram novos longos anos no ciclo: cabelo longo, aprender nomes de corte, raspar os cabelos, risquinhos e desenhos, mudar as cores — eu descobri, tardiamente, mas no tempo que me foi possível, que eu podia brincar com os meus cabelos. E isso é mágico!

Hoje, eu olho para as minhas sobrinhas e para os meus sobrinhos e percebo que a relação delas e deles com seus cabelos nasceu e se desenvolveu de forma saudável, o que me enche de esperança. Essa mudança se deu, eu acredito, impulsionada pelas novas representações criadas sobre o nosso cabelo no decorrer dos anos, muitas delas construídas a partir da literatura, como no livro infantojuvenil Com qual penteado eu vou? (Melhoramentos, 2021), da escritora, Iyálòrìsà e intelectual Kiusam de Oliveira, que eu celebro neste momento por ser fundamental para curarmos feridas antigas e construirmos uma outra realidade.

A história é fundamental para curarmos feridas antigas e construirmos uma outra realidade

Essa relação entre passado e futuro, entre nossos “mais velhos” e nossas “mais velhas” conosco e também com os “mais novos” e as “mais novas” é outro tema sobre o qual o livro nos conduz. Contrariando as estatísticas, que jogam a nossa expectativa de vida lá para baixo, a autora nos apresenta um mundo onde é possível que nossos “mais velhos” e nossas “mais velhas”, assim como nós, vivam(os) até e mais de cem anos — como é o caso do bisa Benedito — honrados e honradas pelos outros familiares.

O retorno da menina

Aqui, aquela menina retorna. Brinca com o avô e a avó, com os tios e tias, com os primos e primas da sua linhagem paterna, num daqueles almoços dominicais intermináveis, mas sente a ausência do outro lado da família: da avó materna, que mora longe demais (estados de distância), do avô materno, que jamais conheceu — por ter falecido cedo demais. Sobre os bisavôs e as bisavós, tanto de um lado quanto de outro, ela soube muito pouco: documentos e informações se perderam no processo colonial de apagamento da sua história.

Hoje eu olho para as minhas sobrinhas e para os meus sobrinhos, eu penso no meu filho, Zuhri, que está sendo gestado, e percebo que, apesar das ausências e da falta de informações sobre eles e elas, os nossos e as nossas ancestrais estão lá, e sempre estarão, ocupando os seus lugares sobre a nossa cabeça, enquanto cumprimos as nossas missões neste mundo físico. Outras feridas antigas se curam diante dessa percepção e da esperança de futuro que o livro aponta.

E, nesse cumprimento das nossas missões por aqui, como poderíamos presentear, como poderíamos honrar os nossos “mais velhos” e as nossas “mais velhas” senão com as virtudes que trouxemos conosco?

O livro nos conecta com saberes e práticas vindos da África que se mantêm nas nossas comunidades

Kiusam apresenta cada bisneto e bisneta do seu Benedito, mencionando os seus nomes, as origens desses nomes e o que significam — um trabalho de pesquisa louvável — e aponta com o que eles e elas o presenteiam.

Toda a trama apresentada no livro Com qual penteado eu vou? nos conecta com saberes e práticas vindos de África e que se mantêm nas nossas comunidades, passando de geração em geração: como uma avó que penteia os cabelos da mãe que penteia os cabelos da filha — que aprende desde cedo a necessidade desses cuidados para crianças e adultos.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Lubi Prates

Poeta, tradutora e curadora, publicou Um corpo negro (Nosotros).

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.