Literatura em língua portuguesa,

O impacto do passado no presente

Em seu novo romance, Valter Hugo Mãe aborda a nossa formação como nação, atravessada pela violência e em busca de esperança

28jun2022 | Edição #59

A narrativa oficial sobre a formação da nacionalidade brasileira faz menção ao que já foi denominado de “a fábula das três raças”. Trata-se de uma forma de imaginar a nação que coloca no centro da cena a relação supostamente harmônica entre as suas três “raças” constitutivas: a indígena, a negra e a branca. Essa narrativa omite as relações de força que caracterizaram a invenção do Brasil. Nela, tudo se passa como se tais grupos estivessem fora da história e fossem desprovidos de localização social. Ou seja, como se significasse uma mera coincidência o fato de que os brancos fossem os colonizadores portugueses que atravessaram o oceano a fim de explorar riquezas e fazer fortunas; os indígenas constituíssem os povos autóctones, dentre os quais muitos foram dizimados; e os negros representassem africanos escravizados, transformados não apenas em mão de obra forçada nos engenhos da colônia, como também em mercadoria que circulava no comércio transatlântico.

Todavia, ao longo da história do país essa narrativa oficial sofreu abalos. Como bem apontou o filósofo francês Ernest Renan no ensaio “O que é uma nação?”, a nacionalidade é um plebiscito de todos os dias, uma relação histórica e política que os membros de distintos grupos sociais, portadores de diferentes tradições culturais e posicionados desigualmente na estrutura da sociedade, constroem e reconstroem permanentemente, não apenas negociando e pactuando, mas também lutando, disputando a partir de situações concretas. E essa luta é também discursiva. Assim, diferentes intelectuais ao longo do século 20 propuseram formas de reimaginar a nação alternativas ao discurso oficial. 

De Florestan Fernandes, que desmascarou a então decantada democracia racial brasileira como um mito que servia para esconder a inserção subordinada da população negra na dinâmica capitalista que ganhava impulso em meados do século 20 no Brasil, a Abdias do Nascimento, que denunciou a imagem do senhor benevolente, a exploração sexual da mulher africana, as estratégias de embranquecimento genético e cultural perpetradas pelas elites e as barreiras impostas a uma discussão racial “proibida”, a lista é extensa. 

Trata-se de uma crítica poética, porque tecida com a prosa que caracteriza o autor

Essa lista não se resume aos nossos autores clássicos das ciências humanas ou da literatura. Alcança nosso presente e encontra entre os protagonistas intelectuais brancos, negros e indígenas. Tal como nas leituras da nossa sociedade e sua inserção no mundo produzidas por Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Paulo Scott, Chico Buarque e tantos outros.


As doenças do Brasil, de Valter Hugo Mãe

Mas, e quando um escritor português se lança nessa empreitada desconstrucionista em tempos de debates enviesados sobre lugar de fala e de cultura do cancelamento? É esse o risco que assume Valter Hugo Mãe em seu livro mais recente, sugestivamente intitulado As doenças do Brasil. E ao assumi-lo nos oferece uma crítica política e poética da nossa formação como nação. 

Narrativas

A trama fala de uma etnia indígena fictícia, os Abaeté, que se defronta com a violência dos invasores brancos e, por meio deles, com negros cativos ou fugitivos. O personagem central, Honra, é fruto do estupro de uma mulher indígena por um homem branco. Sendo mestiço, é atravessado por um doloroso processo de negociação com sua identidade. Ao mesmo tempo que repele com toda a sua ira a marca branca em seu corpo e cultiva uma sede de vingança contra o agressor da sua mãe e do seu povo, é advertido por Pai Velho, xamã, líder espiritual da aldeia, de que a alma abaeté não comporta o ódio. Honra é muito mais que isso. É uma metáfora do Brasil que dá fundamentação à rejeição da visão essencialista da mestiçagem brasileira, isto é, de um traço supostamente substantivo da nossa cultura que não estaria atravessado pela violência e pelo poder. E, tal como o personagem, a nação que ele representa metaforicamente é obrigada a se olhar no espelho, necessita se confrontar com as doenças que marcaram sua formação. 

No entanto, precisa também compreender que sua reconstrução não pode estar assentada no ódio. É isso que nos diz o narrador, numa passagem em que fala dos questionamentos de Honra sobre a voracidade de seus sentimentos: “Odiar era caminho sem regresso. Talvez nunca tivesse lugar de chegada. Era uma ida contínua, sem satisfação”. Isso não significa passar apressadamente a página, num perigoso recalque da história. Demanda, ao contrário, um complexo processo de elaboração. Algo que fica evidente em outra passagem, que trata da resignação e ao mesmo tempo da certeza da mãe de Honra: “Então, Boa de Espanto jurava que teria sempre a coragem de lembrar. Recontaria a sua humilhação a vida toda. Recontaria porque isso ensinaria até as verdadeiríssimas dúvidas a duvidarem menos…”. Daí a densidade da crítica política.  

Trata-se também de uma crítica poética, porque tecida com a prosa que caracteriza o autor, já revelada nos seus livros anteriores. Nessa obra em particular, a poesia remete à mitopoética indígena, como em uma passagem na qual vemos Boa de Espanto procurar na natureza um remédio para sua ferida: 

“Bela voz de nosso igarapé pequeno, importante cobra amistosa, conta tu quanto de tua água é choro. Quanto do choro é alegria, quanto é tristeza. […] Cobra amistosa, educa quem sou para culpar menos, para amar mais, ser grata, gentil, abaeté. Educa para ser sempre mais abaeté…”. 

E política e poética se entrelaçam na crítica, como nesta perspectiva ácida de Pai Velho sobre a visão linear do tempo na sociedade ocidental: “Nossa cultura é sobre ameaça de uma palavra abissal. Uma ideia que preda o modo como vivemos, o nosso tempo concreto, sem mentira. […] Uma mentira sobre o tempo que nos impede de viver quando somos e nos adia para quando jamais haveremos de ser. Chama-se futuro. É uma ideia para onde tudo cai, os que soam, os bichos, as matas, os mares, o mundo inteiro, até a morte e a encantaria. O futuro é a ideia branca que abre por sobre todas as palavras para as adoecer, e por todos os pés e todas as raízes, obrigando à pronúncia apenas depois, num depois que, por definição, nunca acontece”.  

Inquietações

Na publicação do livro em nosso país, Valter Hugo Mãe está cercado de bons companheiros de reflexão. Conceição Evaristo escreve o prefácio. Davi Kopenawa e Ailton Krenak, a quem a obra é dedicada, emprestam suas ideias a epígrafes. A prefaciadora indaga: “A composição do texto pode colocar várias perguntas em relação a Meio da Noite, o personagem negro. Perguntas incômodas, mas fundamentadas em um imaginário que buscava justificar a escravização do sujeito africano, que não era reconhecido em sua humanidade. Um discurso da desumanização do sujeito negro, assim como vários estereótipos colados à pessoa negra, teve e ainda tem, como meio de propagação, o discurso literário, entre outros. Em As doenças do Brasil, o longo tempo da narrativa em que o sujeito negro é apresentado como fera, como perigoso, questionado em suas características humanas por Honra significaria a dúvida que pairou durante a colonização se o africano seria um ser humano ou não? E ainda hoje, significaria um imaginário construído a respeito das pessoas negras?”. Então adverte: “É preciso ler As doenças do Brasil nas linhas e nas entrelinhas”. 

O autor faz também uma espécie de posfácio: “Meus povos”, no qual aborda suas inquietações ao escrever a obra. “Este não é um retrato de comunidade alguma que exista. É meu poema que tem que ver sobretudo com o assombro, o preconceito e a maravilha que sobra em alguém que quer sobretudo inventar uma hipótese por imaginação e exuberância.” Ele também revela um rastro encontrado em seu caderno de apontamentos, um trecho que imaginava inicialmente que comporia o livro, mas que acabou sendo descartado. Nele, há uma referência explícita ao significante Brasil, ladeado por um léxico composto de terra, matas, águas, mares, bichos, pássaro e mesmo Amazônia. 

Nesse mesmo posfácio, justifica o lugar colateral do personagem negro na trama, “essa sombra que nunca se ensimesmou o bastante, mas favoreceu seu irmão [Honra]”. “Fazer com que o livro seja uma ingrata forma de contar uma história negra é uma crueldade que sinto ser necessária. É necessário atentar como em quase tudo apagamos os negros que foram, afinal, presentes e fundamentais.” 

O escritor então confessa: “Julgo que apenas com a morte do meu pai chorei como à escrita de alguns destes capítulos e teve sempre que ver com a figura de Meio da Noite”. E aponta seu fascínio pelos povos originários do Brasil lembrando um acontecimento que o marcou, talvez a ponto de ter sido o impulso para escrever esse livro: “Eu jamais esquecerei o que me disse o cacique dos Anacés, ali cerca de Fortaleza: vá, e diga a seu povo branco que um dia chegou aqui para nos matar, que seguimos de braços abertos para o receber como amigos. […] Eu senti que não poderia jamais escapar daquele sentimento de urgência que em Portugal, esse futuro sempre europeu, não se sente. É, sim, fundamental que saibamos o impacto do passado no presente. É importante essa consciência para terminar seus efeitos e começar a mais elementar solidariedade. Ao menos, a solidariedade contra toda a agressão, espoliação e assassinato a que sujeitam ainda os povos originários, esses que são o Brasil original, o Brasil sem as doenças brancas que quase os extinguiram”. 

Falamos sempre de múltiplos lugares, pois não somos sujeitos unificados, mas sim descentrados

Valter Hugo Mãe diz ainda no posfácio que não é sua intenção “fazer antropologia, sociologia ou sequer história”. Afirma-se um coletor de palavras e reafirma seu compromisso com a poesia. Assim, enfatiza que concebe verdades como se fossem sobretudo vocabulares e aceita erros. Uma postura admirável para um escritor já consagrado, que se coloca num campo ardiloso sabendo-se atravessado por ao menos três localizações identitárias que poderiam ser vistas como impeditivas em relação ao tema de que trata esse seu livro:
as de homem, branco e português.

Mas, acreditamos, lugar de fala não pode ser confundido com monopólio para falar. É, antes, locus de enunciação. Falamos sempre a partir de um lugar, ou melhor, de múltiplos lugares, já que não somos sujeitos unificados, mas sim descentrados. Enfim, como bem salientou Conceição Evaristo no prefácio, o texto nos convida. E o convite vem na forma de mais uma fértil aproximação entre as ciências humanas e a literatura.

O especial Livros que falam a nossa língua tem o apoio de Portugal – País convidado da Bienal Internacional do Livro de São Paulo 2022

Quem escreveu esse texto

Pedro Jaime

Professor da ESPM, é autor de Executivos negros: racismo e diversidade no mundo empresarial (Edusp).

Celso Cruz

É dramaturgo e diretor teatral, com mais de quarenta espetáculos apresentados no Brasil, em Portugal e na Inglaterra.

Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.