Literatura em língua francesa,

Esquecer e preservar

No último romance de Romain Gary, o dom de recordar permite imaginar um mundo depois da ocupação nazista da França

01jun2021 | Edição #46

Para voar, a pipa depende do vento. É uma brincadeira que ensina sobre a insuficiência humana, embora a agência seja imprescindível: enquanto ela flana pelo céu, o condutor tem de fincar os pés no chão. Em As pipas, o flerte com a infinitude do horizonte é transformado por Romain Gary em expressão do que pode sobreviver à destruição da guerra.  

Último romance do escritor lituano que passou a maior parte da vida na França e publicado no ano de sua morte, em 1980, As pipas é dedicado à memória, característica central na composição do narrador. O protagonista, Ludo, é descendente de uma linhagem com o dom de recordar e desprovida da “apaziguadora capacidade de esquecer”. No decorrer do enredo, a sina familiar vira um arrimo para a sobrevivência: lembrar o que já existiu permite a Ludo imaginar um mundo após a ocupação nazista da França. É uma conservação do passado diferente do apego pelo ontem idealizado, porque aponta adiante, a A vida pela frente, para recorrer ao título de outro romance do autor, assinado com o pseudônimo Émile Ajar, também publicado pela Todavia, em 2019.  

Maneiras de resistir 

A construção de As pipas traça um espelhamento entre a vida de Ludo e os acontecimentos da guerra com uma correlação alusiva entre o individual e o coletivo, o circunstancial e algo de mais profundo da condição humana. O livro abre com a infância do protagonista na década de 30: a idade de Ludo corresponde ao tempo que distancia a Europa dos anos sombrios da Primeira Guerra Mundial, conflito responsável pela morte do pai do narrador e do qual o seu tio, Ambroise Fleury, foi sobrevivente. A experiência como soldado faz do personagem um pacifista convicto. 

Carismático, esperançoso incorrigível e chamado de “carteiro biruta” na pequena cidade da Normandia onde o enredo transcorre, Ambroise se torna nacionalmente conhecido pelo ofício de artesão de pipas. É ele quem transmite a prática ao sobrinho e o ensina a manter uma dose de insensatez no trato com a realidade, ressaltando que para a pipa não se perder na vastidão do céu a ponta da linha deve ser segurada com firmeza. 

Ainda criança, Ludo conhece Lila, uma aristocrata polonesa que passa os verões em uma mansão da região. Encantado pela moça, o narrador aprende que sua capacidade de recordar poderia ser de grande valia: quando ela está longe, o menino aciona a lembrança para contornar a saudade. Desde cedo, Ludo associa a memória à fidelidade, um jeito de comprometer-se com a marca que alguém ou alguma coisa deixou em sua vida. 

Embora a imaginação proteja, o seu excesso pode embriagar. Desejando que o primeiro amor dure para sempre, o rapaz não quer acreditar no fim desse sentimento e nos dias difíceis que se avizinham, recusa que a organização da narrativa aproxima do desenho das forças políticas diante do avanço do exército alemão. A prepotente adolescência de Ludo acaba com a descoberta da fragilidade da liberdade, da qual a França parecia a mais inabalável guardiã. 

A invasão da Polônia pelos nazistas é uma dobra que afeta o ritmo da narrativa. A instabilidade dos tempos torna a inclinação à memória ainda mais necessária, e a falta de notícias de Lila é preenchida com recordações. Ambroise compara a espera do rapaz à dos franceses depois da chegada dos alemães, também preferindo imaginar que um dia terão o seu país de volta, ainda que não possam saber o que será da pátria depois da devastação.

Viver de memória é um recurso para manter aceso o que parecia perdido. Não é um escudo para a invasão da violência, pois ainda há o desafio de se manter vivo

A reação francesa à ocupação nazista explora diferentes acepções da palavra resistência. Além da luta armada, um chef de cozinha insiste em servir o que a França tem de melhor aos invasores, pela obstinação de preservar o que vê como inalienável no lugar onde tem raízes. Ou a cafetina que usa um broche de lagarto por ser “um animal que sobrevive desde o início dos tempos”. Ou, ainda, a rebeldia de Ambroise, que reage às notícias do extermínio judaico levando ao céu a imagem de uma estrela de davi. O mero viver cotidiano pode ser uma silenciosa afronta quando a ordem é abaixar a cabeça: “Sempre digo ‘uma bela manhã’ porque as palavras criam seus próprios hábitos e não são os blindados alemães que irão mudá-los”.  

Viver de memória é um recurso para manter aceso aquilo que parecia perdido. Não é propriamente um escudo para a invasão da violência na rotina, até porque ainda há o presente ingrato e o desafio de apenas se manter vivo. Ludo, aliás, aprende que eventualmente o tempo corrente convoca de tal maneira que é preciso também esquecer. Não para apagar, mas para deixar perder o que pode fazer o futuro impensável. 

Coisas vivas

As pipas expressam o equilíbrio delicado entre a proteção do devaneio e as respostas à dureza das circunstâncias; afinal, existe um fio que conduz o voo. O sentido que Gary confere aos objetos soa como uma imagem de resiliência, avessa à submissão. Para nomear suas criações, Ambroise usa a palavra “gnamas”, termo relativo àquilo “que carrega o sopro da vida, homens, mosquitos, leões, ideias ou elefantes”. Ludo e o tio fazem daquilo que é apenas madeira e papel uma coisa viva, até porque também é frágil, mas a finitude não subtrai a graça do processo. O artesão ensina ao sobrinho que as pipas podem se soltar da linha e, se não forem levadas pelo vento, pode ser possível reencontrá-las e reconstruí-las. 

A cronologia linear do romance é quebrada às vezes pela inserção da voz do narrador em um tempo posterior, quando muitos já se esqueceram dos pequenos eventos que formaram aqueles anos difíceis. A memória prodigiosa de Ludo se dispõe a relatar a resistência não a um inimigo, mas a tudo de horrível que foi cometido. Embora seja um romance sobre a guerra, é também a busca pelo registro do que pode exercer uma contrapressão em meio à destruição, como laços de amizades improváveis, rompantes de coragem, gentilezas inesperadas, coisas capazes de conferir algum sentido à existência quando viver parece inviável. 

Este texto foi feito com o apoio da Embaixada da França no Brasil

Quem escreveu esse texto

Iara Machado Pinheiro

É crítica literária, doutoranda em letras pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.