Literatura brasileira,

Transações tenebrosas

Ficção científica, interpretação do país e relação entre pai e filho se sobrepõem em novo romance de Bernardo Carvalho

01dez2023

Meio ficção científica, meio romance de interpretação do país, o novo livro de Bernardo Carvalho, Os substitutos, revisita o período da ditadura militar sob um ângulo temático mais ou menos novo: a ocupação da floresta por ruralistas e mediada por militares de alta patente ao longo dos anos 70. 


Em Os substitutos, Bernardo Carvalho traz uma tonalidade altamente especulativa ou “futurista” do gênero de ficção científica

Mas não se trata de um romance histórico, com propósitos documentais, já que toda a trama é conduzida pelo olhar de um pré-adolescente que, em viagens pelo Centro-oeste do Brasil, acompanha o pai — um vendedor de madeira bem-sucedido — sem entender muito bem aquilo que testemunha. Daí que o livro tenha também certa aura de mistério, como é próprio ao projeto literário do autor, pois a ignorância e a ingenuidade do filho são traduzidas na própria narrativa que pouco explica do país.

Ficamos sabendo que o pai sobrevoa a região entre Goiás e Tocantins em razão de indicações subliminares a nomes de rios, como o rio das Almas, e depois ao aeroporto de Goiânia. O mesmo vale para o período: uma nota de cinco cruzeiros, por exemplo, ajuda o leitor a se situar no tempo. Já o avião bimotor pilotado pelo pai, quase sempre de modo temerário, é como outro personagem do livro, oferecendo visões panorâmicas do Brasil, entre a beleza e o horror, a aventura e o medo.

Quanto à ficção científica, como se não bastasse o material propriamente nacional, ela entra na trama por meio da referência a um livro infantojuvenil que o rapaz carrega consigo a todo canto, para desgosto do pai. O título deste livro é sugestivo, Os substitutos, assim como o enredo: após o fim do mundo, um grupo de desmemoriados supostamente geniais é enviado a uma jornada pelo espaço com objetivo de explorar novas condições de vida por lá. 

Certo clima de história interrompida impera no livro. Quase tudo vai sendo deixado pelo caminho

O recurso metalinguístico não deixa de soar um pouco manjado ou esquemático, mas a maneira como as duas histórias vão ganhando novos sentidos ao longo do romance é inteligente e convence. A rigor, elas também se “substituem”, já que Bernardo Carvalho, a certa altura, passa a justapô-las. Nesse processo, as histórias podem iluminar uma à outra, mas o autor também explora seu desencaixe. 

A tonalidade altamente especulativa ou “futurista” do gênero de ficção científica, a princípio, não parece combinar com as transações tenebrosas que o romance chega a descrever, de passagem. E “salvar a humanidade” passa longe dos anseios dos personagens brasileiros. Seja como for, o pai quer mesmo é vender madeira.

Por outro lado, a intromissão da ficção científica na trama nacional nos lembra que estamos, a rigor, aqui e ali, diante de uma distopia. Eis outro aspecto crucial da ficção científica: em geral, ela também nos expõe àquilo que causa horror e medo. Nesse sentido, talvez seja a linguagem do nosso tempo por excelência. E o filho, à sua maneira — assim como os eleitos da tal missão espacial — também é uma espécie de desmemoriado que procura lembrar das histórias do pai (e do país). Histórias que, a seu modo, têm algo também de absurdas. A nave espacial está para a ficção científica como o avião bimotor para o romance nacional. 

Em suma, são territórios estranhos, mas também afins, e que buscam, de diferentes formas, compreender o presente. Daí que Os substitutos não seja exatamente nem ficção científica nem interpretação do país. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Essa parece ser a aposta do autor (aposta formal e política) para compreender o nosso tempo.

Acerto de contas

Embora o romance possa ser lido como uma espécie de acerto de contas com a história do Brasil, ao denunciar o desmatamento, o tráficode madeira, a corrupção dos militares e a matança de indígenas, o foco da trama recai sobre a intrincada relação entre pai e filho. A história do país é pano de fundo, passagem desbotada na memória, mas nem por isso menos significativa. Afinal, tudo no livro se substitui, e uma coisa pode ocupar o lugar da outra. Por exemplo, contar a história da paternidade, nesse caso, é como lembrar do Brasil — pai e pátria se tornam uma coisa só.

O relato acompanha, em idas e vindas, diferentes momentos da vida dos dois — se concentra nos anos 70, mas avança até mais ou menos 2019, por meio da referência ao incêndio “que um ano antes reduzira o Museu Nacional a pó”, e que funciona no fim como alegoria de um vazio. A vida do pai degringola, como era de se esperar, e a do garoto não fica tanto atrás, deixando pouca margem para o salvacionismo prometido antes na ficção científica.

Certo clima de história interrompida também impera no livro. Quase tudo vai sendo deixado pelo caminho: casamentos, monografias, viagens, projetos profissionais, heranças, destinos. E outros elementos, meio a esmo, vão sendo colocados no lugar. Os próprios capítulos do livro são em geral curtos, confirmandono ritmo da leitura o efeito das viagens aleatórias, dos cortes, das histórias que não se completam. 

Porém, na parte final do romance, como uma espécie de contraponto a isso, arma-se uma tentativa de organizar esses fragmentos soltos, dar nome às coisas, desafiar o esquecimento. O filho, agora adulto, quando cogita contar ao namorado um dos voos que fez com o pai no bimotor, ao ter sido abandonado em uma fazenda por motivos obscuros, pensa que “um oco o impedia”: “O oco era a memória, a história do país”, conclui.

Apesar do flagrante desencanto, e do provável diagnóstico da pobreza do presente, Os substitutos faz também suas apostas, algumas ambiciosas. Do “elogio do erro” ao trabalho da memória, mesmo que seja um arremedo dela. Literariamente, é possível que tenha algo no livro de Quarup, de Antonio Callado, e também do conto “O jardim das veredas que se bifurcam”, de Jorge Luis Borges. O leitor notará que a expressão que dá título ao romance é a chave mestra que abre todas as portas do livro — e que leva a um labirinto.

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).