Literatura brasileira,

O abolicionista da era moderna

Novo trabalho do premiado autor de ‘Torto arado’ reúne contos que buscam recuperar o passado negro e indígena do Brasil

01jul2021 | Edição #47

Outubro de 2019. Cidade do Crato, região do Cariri cearense, popularmente conhecida como “Oásis do Sertão” pela rica amenidade do seu clima úmido em contraste com o restante do estado. Foi nessa cidade, a convite do Sesc, durante o Festival da Palavra, que encontrei pela primeira vez Itamar Vieira Junior e tive contato com seu livro revelador Torto arado. Íamos tratar ali, em um palco improvisado no meio da praça, dos nossos trabalhos autorais: ele, do seu premiado romance; eu, da biografia que escrevi sobre Carolina Maria de Jesus.

A informalidade do encontro propiciou uma aproximação entre nós. Na conversa com o público, falamos sobre assuntos para além do que havíamos sidos convidados, findando com uma ótima cerveja gelada após o evento. Desse encontro trouxe para casa o seu autógrafo, complementar a algumas anotações feitas por ele na folha de rosto de seu romance, ao qual se referia como um livro dedicado a uma “história de amor e luta, vida e morte, terra e palavra”. Torto arado assumiu posição de destaque na minha estante de preciosidades, assim como na de milhares de brasileiros que o tornaram um fenômeno de vendas do mercado editorial, além dos prêmios que amealhou nos últimos anos: o LeYa, o Jabuti e o Oceanos.

Junho de 2021. Agora tenho diante de mim Doramar ou a odisseia, um livro de doze histórias urdidas no precioso cadinho de uma escrita que continua inquietante e que vai, certamente, inquietar meio mundo, sendo que conta com cinco contos inéditos, além dos sete que foram publicados anteriormente em A oração do carrasco (Mondrongo, 2017).

Itamar é muito sensível na sua escrita cortante. Molda falas pelo fio de uma lâmina, torna-as langorosas ao estirar gomos delas como feixes de carnes sangrentas. Não é algo exclusivo do novo livro. Itamar parece ser mesmo assim. Sua escrita dá a impressão de trazer esse condão de tocar na ferida, expor vísceras em vez de sorrisos. Ele não dimensiona personagens; ele as revela. Guimarães Rosa escreveu certa vez que viver “é um eterno rasgar-se e remendar-se”. Itamar toma para si esse cantochão da prosa rosiana, que perpassa toda a sua jornada nas letras, desde A oração do carrasco.

Vivendo da memória e da descrição de ambientes, com base no ancestral e nos viventes, Itamar é um geógrafo das letras, um doutor na cirurgia do modo de pensar dos seus tipos criativos. Ele se envolve com cada um dos seus personagens. Provavelmente adquire marcas de sofrimentos e escoriações feito um escravizado, chora e sente frio e fome, pois se vê dominado. Em “Farol das almas”, um dos belos contos da coletânea, o imaginamos na iminência de ser lançado agonizante do barco para servir de repasto ao cardume de peixes. Ou no conto “Alma”, no qual, em fuga, só tinha para cobrir o corpo o vestido bonito retirado da sua senhora.

Terra e dor 

Quem percebe um Lima Barreto alucinado com a escrita e um Cruz e Sousa emparedado com a estética simbolista depara-se com um Itamar Vieira Junior dilacerado pelo sentir. Seus textos evocam uma oração às avessas, uma certa litania, doentia e oca. Doramar ou a odisseia é um missal que se lê como um grimório, de trás para frente, de frente para trás. 

A escrita de Itamar traz esse condão de tocar na ferida, expor vísceras em vez de sorrisos

Com ele, a literatura de Itamar busca respostas, nem sempre obtidas, a par de um Brasil que não se reconhece negro e indígena, fundado no colonialismo que é a opressão.

Itamar não só busca esse Brasil como faz essas conexões. Provoca reflexões ao explorar o sentido da memória, embrenhando-se mata adentro pelos escaninhos do sentir e do pensar. O passado é o que lhe ilumina o tempo presente. As mulheres continuam fortes, em um alinhamento entre a natureza e a terra. A terra como legado e como dor, seja pelo indígena, seja pelo negro e pela negra, em um misto de loucura e paixão, de agonia e posse. Assim o vemos no conto-título “Doramar ou a odisseia”. Itamar o define dentro desta frase lapidar: “Estou viva no meu silêncio”. Esse mesmo silêncio é o que transforma a vida de uma família em “A oração do carrasco” e se reconecta em “Voltar”.

Itamar é um contador de histórias que nos assombram até muito tempo depois de finda a leitura. Ele cavouca a terra em busca de cacos de vidas que lhe permitem fazer essa viagem ao passado — e aos seus antepassados, que passam também a ser os nossos. Por ofício e por dever, como escritor e cientista, reescreve nos seus textos a nova carta do descobrimento, proclama uma república dos despossuídos e torna-se o abolicionista da era moderna. Daí assume grande significado a leitura de “manto da apresentação”, no qual se propõe a uma digressão à memória de Arthur Bispo do Rosário, ou em “O espírito aboni das coisas”, que remete aos povos indígenas jarauaras, também denominados “pessoas de verdade”. Esse é outro belo conto que trata do amor de Tokowisa e Yanici, tendo a floresta de permeio. Seria uma releitura do clássico alencariano de Ceci e Peri? Vai saber. 

O certo é que Itamar continua carregado da herança genética de suas origens e do mais alto propósito de sua vida, como artista e ser social, atuante e indignado, sempre nesse embate duro com a realidade em favor dos que têm “o defeito de cor” ou são, por denominação, originários.

O sucesso de Torto arado, caminho que deverá ter Doramar ou a odisseia, tem a ver com toda estrada percorrida. Com a força ancestral de Bibiana e Belonísia, a gente e a terra não saem do seu foco. Não é sem razão dizer que foram forjadas no caminho-leitura, no caminho-aprendizado, no caminho-escrita, essa escrevivência que lhe recorta o discurso e alia sua linguagem, fulcrada no oral e no tradicional. Dizer que vale a pena ler Doramar ou a odisseia é pouco. Embrenhar-se pelo seu mundo talvez seja a melhor maneira de senti-lo.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Tom Farias

Jornalista e crítico literário, lança em novembro Escritos negros: crítica e jornalismo literário (Editora Malê).

Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.