Literatura brasileira,

Não há abismo em que o Brasil caiba

André Sant’Anna interrompe hiato de sete anos em novo livro que disseca as imagens do absurdo que compõem o Brasil contemporâneo

01out2021 | Edição #50

Um corpo que definha, corroído por pequenos tumores que pouco a pouco vão carcomendo um organismo, com sinais que se manifestam com maior ou menor intensidade. A metástase, portanto. “Há um câncer espalhado pelo Brasil”, diz André Sant’Anna à Quatro Cinco Um. A recuperação do paciente — do país — é improvável. “Eu só consigo ver o fim”, assevera o autor. A metáfora sugere uma espécie de distopia final à nação, descrita em textos inclassificáveis quanto à forma e gênero em Discurso sobre a metástase.

Sant’Anna já havia mirado sua artilharia para a crítica social antes, em obras como Amor e outras histórias (2001) e Sexo e amizade (2007). A temática finca pé no repertório do escritor em O Brasil é bom (2014), que satiriza os temores de um estrato da população temeroso com a ascensão de uma nova classe média, faz críticas ao consumismo exagerado e detecta algo que se tornaria premente no país: a figura do “cidadão de bem”. Discurso sobre a metástase encerra, ao menos por ora, o diagnóstico de um Brasil esfacelado. “A destruição é total: educação, meio ambiente, cultura… O que nós vivemos é a vitória da estupidez, personificada na figura do atual presidente da República.”

Sant’Anna destrincha os vícios de um círculo que se retroalimenta na desigualdade social

O aniquilamento social é descrito sem nuances, radicalizando a proposta de seu último livro. Na crônica “Os melhores do mundo”, Sant’Anna destrincha os vícios de um círculo que se retroalimenta na desigualdade social.

A parte do povo brasileiro que está na Classe Alta, uma Classe Alta que é tão burra, tão ignorante, que, na verdade, é uma Classe Alta Baixa, não associa, em sua cabeça imbecil, o imposto que sonega com o menor bandidinho, que devia baixar a maioridade dele que é para ele ser estuprado na cadeia que ele merece, que pega a mulher do cidadão de bem da Classe Alta Baixa e dá um tiro na cara dela, no sinal.

O autor vai elencando os personagens da tragédia brasileira em textos caricatos e grotescos, com doses cavalares de ironia e deboche, porque é assim que ele vê sua terra. A escrita não-linear abusa da repetição de palavras e sentenças. Chavões como “dinheiro é a coisa mais importante do mundo” e “Deus é bom” são atirados ao texto sem qualquer filtro, como estampidos secos rasgando a cabeça do autor rumo à folha em branco: “Tenho escrito de uma forma cada vez mais próxima da maneira como penso”. A intenção é explícita: abandonar o pensamento organizado com “aquilo-que-eu-quero-dizer-enquanto-literatura”.

O pior tipo de capitalismo

A ironia não respeita ideologia, e Sant’Anna amplia a roda do Brasil distópico. No texto que intitula o livro, o convite à baila inclui uma análise dos anos “de um governo de esquerda que não era de esquerda”, a ascensão de uma “Nova Classe Baixa Alta” que alimenta o “pior tipo de capitalismo possível, esse capitalismo selvagem”, enquanto “os bancos, as empreiteiras, agronegociantes e organizações criminosas em geral bateram todos os recordes de lucratividade”. A metralhadora giratória do caos não poupa ninguém.

Dividido em três partes, o primeiro excerto do livro, “O Homem”, é formado por narrativas mais breves, quase todas voltadas às análises que envolvem não só o contexto social e político do país, mas também a ascendência da religião nas relações humanas, a própria existência e suas complexidades. O respiro aparece em “Ela vai morrer no final”, conto no qual o autor escapa da ruína coletiva para escrever uma história delirante sobre um amor juvenil, um interregno poético em meio à indigestão contumaz.

A segunda parte, “O autor”, tem um tom mais personalístico. O texto de abertura é autobiográfico, com anseios de alguém que mesmo antes de se dedicar às letras queria mesmo era ser como o beatle George Harrison. As aventuras pela música e no teatro são atravessadas por um sentido particular de inadequação perante a vida, ainda que o desejo de realizar nunca tenha sucumbido. A miscelânea de eventos revela as influências mais duradouras, quase indispensáveis, com citações de Glauber Rocha, Jean-Luc Godard e Jorge Mautner.

Mautner e Glauber, assim como Darcy Ribeiro, aparecem como destinatários de “A história do Brasil”, uma missiva cujo conteúdo reflete a esperança esvaziada a respeito de um país que poderíamos ter sido, mas que, entre outras coisas, está preso à “tendência histórica de trocar tudo que é bom por croc-chips-bits-burgers descartáveis”. São esses desencontros da vida intelectual e ideológica em um país na periferia do capitalismo, com vasta análise na literatura nacional, como em “Nacional por subtração”, de Roberto Schwarz.

A insanidade dos diálogos conduzidos por Zeitgeist de Almeida nos joga diante de um fatalismo inexorável

A segunda parte é encerrada com “A história do meu pai”, em que ele narra o relacionamento com seu pai, Sérgio Sant’Anna, um dos maiores escritores do país, autor de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982) e A tragédia brasileira (1987), e que foi vítima da Covid-19. O relato memorialístico é construído a partir da relação com os livros do pai, que completaria oitenta anos em outubro próximo. “O Sérgio Sant’Anna é meio maluco e é meu pai”, diz a primeira linha do texto. “Temos um estilo diferente, mas herdei dele um jeito provocativo”, me disse André para um texto na Folha de S.Paulo a respeito de eventuais comparações.

O corte para a retomada do tom apocalíptico que conduz grande parte do volume acontece na terceira e última parte, “O discurso”, com um texto dramatúrgico intitulado “O fim do teatro”. A insanidade dos diálogos conduzidos pelo diretor Zeitgeist de Almeida, o tal “Ministro de Porra Nenhuma”, embalado por um “coro de Imbecis”, nos joga diante de um fatalismo inexorável. “Estamos mortos, apodrecendo… Não sei… Estou pensando. Eu penso demais, muito. Vocês também?” Se a questão for abreviar o raciocínio e ir direto ao ponto, André Sant’Anna diria o óbvio: tamo fudido.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.  

Quem escreveu esse texto

Guilherme Henrique

É jornalista.

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.