Literatura brasileira,

Like a rolling stone

Narrados por um Bob Dylan onírico, sonetos de poeta paulista combinam capricho formal e língua solta

28out2022

Alguma coisa soa estranha no título do livro mais recente de Fabrício Corsaletti. Engenheiro fantasma? A primeira palavra faz pensar em cálculos numéricos, projetos, construções, a racionalidade de coisas assim. Mas “fantasma” tende a levar a mente em outra direção: o que é de existência duvidosa, visível até, mas infenso às limitações de tempo e espaço e, portanto, aos critérios da pura razão.

Por isso mesmo, é um título acertado para este livro, que alia estrutura cerrada e errância, sob o signo da duplicidade. Seus 56 sonetos, embora estritamente metrificados e rimados, conduzem em linguagem francamente coloquial o divagar narrativo de um sujeito que fala em primeira pessoa, ninguém menos do que Bob Dylan revelado em sonho ao nosso Autor, segundo diz o prólogo. E, em vez do Dylan nobelizado (que seria apenas um duplo do criador das canções que conhecemos — mas isso não é assunto no livro), esse sonhado é que teria escrito os poemas reunidos no volume assinado por Fabrício.

Confusão marota

Para acompanhar o que dizem os poemas basta topar o pacto da famosa suspensão da descrença, deixando-se levar pelas refrações de uma confusão marota. O verdadeiro autor de “Blowin’ in the Wind” mudara-se décadas antes para Buenos Aires (“eu vou cruzar a última fronteira” é um verso do primeiro poema), onde publicou 200 Sonnets, livro tornado cult entre os argentinos e do qual podemos agora ler alguns em português. E aqui outro parentesco roça o partido do livro. Desde o prólogo, e até no fato de haver um, o enquadramento tem um tanto de borgeano (ambiente portenho, sonho como disparador da narrativa, identidade cindida). Mas não a linguagem. Esta é puro Fabrício: capricho formal, imaginação de sobra e língua solta, combinados ao longo dos poemas, em versos como estes: “o cavalo de Borges reencarnado/ sobe as escadas da biblioteca/ um mendigo agarrado a uma boneca/ letreiros ricamente decorados// Palermo fica para o outro lado/ eles querem que um dia eu use beca/ na grade da sacada a capa seca/ o tempo sonha quando está parado”. Ou no certeiro soneto n. 10, que rima “jardim” com [Graham] “Greene”. Aliás, nessa arte contemporânea da poesia de forma fixa em português coloquial brasileiro não faltam rimas espertas, como mais estas duas: “não sei/ vocês”; “orixás/ jazz”).

Retrato de Fabrício Corsaletti pelas lentes de Renato Parada

Bem, talvez não se trate exatamente do Fabrício de sempre, a operação é nova, ou pelo menos mais radical. Mas dentro de uma mesma ideia, a de reutilizar formas poéticas tradicionais — como ele já fez com a quadra popular e a balada — para trabalhar nelas a sua própria dicção. Agora a forma tradicional em questão, o soneto, recebe o enxerto de uma poética alheia (que, claro, não é qualquer uma…), produzindo uma colheita generosa. Assim como várias canções de Bob Dylan, os poemas de Engenheiro fantasma nos levam por uma espécie de deriva incessante e desmesurada da imaginação narrativa em forma de versos (“como Rimbaud só ouço as minhas pernas”), não estranha ao desdobramento associativo típico dos sonhos. E habitada por uma multidão de personagens meio fora do comum, malcomportados, desajustados — como se dizia dos beatniks e afins, na época em que Dylan deixou para trás sua primeira encarnação, Robert Zimmerman. O sujeito que fala nos poemas está abraçando muitos que estão sem estarem bem na superfície do mundo.

Os poemas nos levam por uma espécie de deriva incessante e desmesurada da imaginação narrativa

Incorporando esses traços da poética de Dylan, Fabrício prossegue naquela que é reconhecível, há tempos, como sua linguagem característica. Eles já existiam na poesia de vários de seus livros anteriores, e neste foram intensificados num gesto de espírito paródico. Não como piada, mas no sentido de canto paralelo. Se há alguma ironia no distanciamento entre nosso velho Dylan-mito e o sonhado em Buenos Aires, e também entre os supostos poemas desse refugiado na Argentina e os do livro que temos nas mãos, a paródia é, no fundo, amorosa: uma conjunção por afinidade, que, como na melhor ética das relações afetivas, não apaga as diferenças.

Além disso, o gesto tem analogias com um expediente bem conhecido dos biógrafos de Bob Dylan, principalmente no início de sua carreira, quando tomou para si estruturas poéticas (“A Hard Rain’s A-gonna Fall” foi baseada no modelo de uma antiga balada inglesa ou escocesa), melodias (“Don’t Think Twice, It’s All Right”, tirada de uma composição de seu contemporâneo Paul Clayton, ou ambas de outra canção tradicional) e arranjos alheios (“House of the Rising Sun”, do qual seu amigo Dave Van Ronk foi desapropriado). Daí que, glosando o mestre, o título Engenheiro fantasma venha de uma canção incluída em Highway 61 Revisited (que, em mais um paralelo com o expediente do livro, aparece naquele disco sob outro nome,It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry”). E, na mesma lógica, é pertinente haver também citações diretas ou adaptadas de textos de Dylan embutidas nos sonetos. Mas não parecem ser muitas e os poemas se sustentam por si, sem nada a ver com alguma proposta na linha “onde está Wally”. Fora uma glosa evidente de “All Along the Watchtower”, os brinquedos mais reconhecíveis desse tipo se passam no nosso quintal, um eco de Jorge Ben Jor, outro de Caetano e mais um de Chico Buarque.

Há muitas dobras, portanto, nos poemas do livro, o que talvez permita ler algumas passagens como sendo autorreferentes. Por exemplo, quando a voz do falso Dylan e a do verdadeiro autor parecem se fundir: “escrevo com camadas superpostas/ meu verso é sempre firme e sempre liso”. Mas essa interpretação, além de meio óbvia no caso do primeiro verso, falha quanto ao segundo. Embora firmes, não são sempre lisos os versos de Engenheiro fantasma. Abrindo bem olhos e ouvidos à agitação que atravessa os poemas, para pensar sobre o que Fabrício Corsaletti fez desta vez, entornando seu Dylan, seria melhor se apropriar dos termos do soneto 33: “beber algum licor ferruginoso/ que caia em minha voz como uma luva/ de veludo e crispada de ruídos”.

Quem escreveu esse texto

João Bandeira

Autor de Rente (Ateliê) e Quem quando queira (Cosac Naify), prepara um novo livro de poema