Literatura brasileira,

Espelho retrovisor

Num jogo entre passado e futuro, Michel Laub reflete sobre os fantasmas do presente e extremismos políticos

25mar2024
O escritor Michel Laub [Renato Parada/Divulgação]

Começo, meio e fim. Os marcos de uma narrativa, pessoal ou nacional, são propositalmente indefinidos em Passeio com o gigante, romance recém-lançado de Michel Laub, no qual o autor desvia do tentador lugar-comum de cerrar a leitura da realidade a partir da perspectiva do cíclico temporal. Em vez disso, como diz o protagonista, o autor opta por “entender aquilo que não é repetição nessa história”. Em diálogo com seu romance anterior, Solução de dois Estados (Companhia das Letras, 2020), o autor continua a explorar a penetração avassaladora do extremismo de direita no cotidiano brasileiro, deslindando sua gênese e deixando em aberto para onde vamos.

Laub utiliza de seu estilo característico, capítulos por vezes curtos e entrecortados, que apresentam diferentes vozes e registros, com destaque para segmentos que reproduzem uma palestra do protagonista, Davi Rieseman. O empresário, após assumir a companhia de seguros de seu sogro, fala a uma “plateia de judeus” na sede da empresa. A apresentação do contexto é dosada de maneira habilidosa — outro traço marcante de Laub —, mas o leitor entende que estamos no início de 2018, e Davi pede doações para a campanha de um candidato à Presidência da República que sairia vitorioso e conduziria o Brasil de maneira trágica durante a pandemia de Covid. Fica a critério do leitor interpretar se a ausência do nome do mandatário se dá pela obviedade ou porque o importante aqui são os fatos e seus desdobramentos.

O autor continua a explorar a penetração avassaladora do extremismo de direita no cotidiano brasileiro

O discurso de Davi se mostra como um entre vários possíveis começos para o livro. Filho de uma professora, Davi estudou no colégio judaico em que a mãe lecionava, e lá conheceu uma menina rica que viria a se tornar sua esposa e mãe de sua filha. Uma parte do romance fala de um episódio particular, em 1995: Davi Rieseman chega à casa do sogro, o Velho Uri, e o encontra gritando com a televisão. Ele assiste às notícias do assassinato do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin. A fala elogiosa do sogro a Yigal Amir — o assassino, um judeu religioso da direita extremista — e o consentimento de Davi com um prosaico “pois é” teriam selado o futuro do garoto como genro ideal, apto a futuramente assumir os negócios do Velho Uri.

Há, nesse episódio, um jogo entre passado e futuro. Um comentário aparentemente insignificante tem consequências ao longo da vida e, de certa forma, para o Brasil e o mundo, assombrando novamente Davi, quando ele se vê em um hospital anos depois.

A menção a Rabin parece ancorada no noticiário: diversas vezes Jair Bolsonaro mostrou-se alinhado com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, figura que ascendeu na política israelense nas manifestações que sucederam os Acordos de Oslo, nas quais Rabin, primeiro-ministro que ratificou o processo de paz no lado israelense, era chamado de traidor. Recentemente, inclusive, surgiram vozes na direita israelense pedindo a soltura de Yigal Amir.

Antepassados

A história de Davi Rieseman chega a 2024, e ele está prestes a fazer um novo discurso. Seu conteúdo é debatido com um coro de fantasmas que inclui sua mãe, amigos e judeus mortos que perpassam a história, incluindo Olga Benário, militante comunista e companheira de Luís Carlos Prestes deportada para um campo de concentração por Getúlio Vargas, o dramaturgo António José da Silva, morto na Inquisição e o líder do Levante do Gueto de Varsóvia, Mordechai Anielewicz. O que une essas figuras é que elas se opuseram ao poder vigente, por mais gigante que ele fosse. Mais de uma vez, é mencionado o boxeador judeu Benny Leonard, inspiração do Velho Uri e que, de certa forma, incorpora a ideia de “judaísmo musculoso” proposta por Max Nordau: o sogro de Davi era movido pela defesa da ideia de judeus se dedicarem a trabalhar a força no corpo e no espírito, contrapondo-se ao estereótipo do fraco, doente e facilmente aniquilado.

Na mesma lógica, o título do romance e o nome do protagonista parecem fazer referência à luta bíblica do Rei Davi contra o gigante Golias. Entretanto, Davi Rieseman propõe ser o novo, e não um decalque do passado. Em vez de vencer o oponente com um estilingue, ele se alia ao gigante e, quando dá errado, insiste. Novamente, um alçapão se abre sob o aparente fundo da história. Ao ser questionado por um coro de fantasmas sobre o teor do seu próximo discurso, Davi Rieseman se recusa a mostrar arrependimento. Laub opta pela complexidade. Davi não é como o Velho Uri, que por sua vez não era Benny Leonard. Porém, com o seu “pois é”, o genro tinha garantido o seu lugar nessa dinastia.

O leitor perpassa uma sequência de conflitos que se misturam sem resolução no horizonte

Em uma narrativa relativamente curta, Laub consegue incorporar ainda mais elementos atuais. A guerra entre Israel e o Hamas iniciada em outubro de 2023 é sutilmente mencionada em uma passagem. O sequestro da bandeira de Israel e a defesa incondicional do Estado pela ala evangélica e conservadora brasileira aparece no discurso de Davi Rieseman ao mencionar certo pastor Duílio como aliado (o mesmo nome já surgira em Solução de dois Estados). Em Passeio com o gigante há essa situação vista a partir da ótica de um judeu conservador, em lógica similar à que se observa na presença de pastores evangélicos em eventos da política comunitária judaica e vice-versa, com lideranças judaicas conservadoras presentes em grandes atos, como a Marcha para Jesus.

Laub insere no romance a experiência de jovens em um movimento judaico sionista, o fictício Tov (“bom” em hebraico). Essa experiência, já explorada por Jacques Fux em seu livro de estreia, Antiterapias (Maralto, 2022), aqui perde o romantismo típico da juventude, ao ser corrompida pelo protagonista já adulto, que incorpora o Tov ao seu projeto pessoal na empresa e no Instituto Benny Leonard, entidade filantrópica que encabeça. Esse percurso também é um retrato amargo da perda dos ideais da juventude e sua substituição por uma força misturada ao capital e ao pragmatismo. Sob outro prisma, é o rei Davi que incorpora um gigante.

Fiel ao seu estilo, Laub alcança com Passeio com o gigante a maturidade de sua prosa, jogando com questões do presente e seus fantasmas: se a obra anterior anunciava uma solução sem que nada estivesse solucionado, aqui o título convida a um passeio em que as expectativas de uma fruição harmoniosa são frustradas. O leitor perpassa uma sequência de conflitos que se misturam sem resolução no horizonte. Assim, o autor posiciona a ficção contemporânea frente aos relatos compartilhados em tempo real: a reflexão, a complexidade dos múltiplos olhares e o tempo reorganizado pela imaginação ainda encontram nos livros seu lugar ideal.

Quem escreveu esse texto

Thais Lancman

Escritora e crítica literária, publicou Pessoas promíscuas de águas e pedras (Patuá).