Literatura brasileira,

Afetos perturbadores

Em romance de estreia, escritora paulista atualiza o tema da fragmentação feminina diante do abandono masculino

01abr2021

O enredo do romance de estreia de Natalia Timerman, Copo vazio (Todavia), é tecido de forma habilidosa entre passado, presente e projeções futuras. A cada capítulo, colhe-se algum detalhe que ajuda a recompor o quebra-cabeça da travessia de Mirela a partir do abandono de Pedro. A trama é composta pela alternância dos capítulos “Depois”, “Antes”, “Hoje” e “Agora”, fazendo do tempo e da cidade de São Paulo personagens quase tão importantes quanto a protagonista.

O tempo presente é escolhido para retratar a sucessão de hojes, laço que contém tanto a imobilidade de Mirela em relação à sua dor quanto a sua busca por motivos que justifiquem o abandono e uma espera beckettiana pelo retorno do homem amado. O passado vai informando o leitor sobre as construções dos antes que levaram aos hojes, restando ao futuro o depois, composto talvez de projeções e devaneios da protagonista. 

A estrutura temporal enriquece a trama: há sempre a sensação de que algo está prestes a se revelar a respeito do abandono. Os deslocamentos temporais também proporcionam ao leitor momentos de aproximação ou rejeição da vivência de Mirela. A tessitura sintática de Timerman mantém o leitor enredado nesse ir e vir de camadas temporais que retratam ora dias, ora meses, ora uma década.

Mirela é uma jovem arquiteta que tem um projeto premiado no fim da faculdade, o que lhe garante um bom emprego. É uma mulher bonita que mora em um bairro nobre de São Paulo e parece levar uma boa vida. Suas andanças pela metrópole são narradas com riqueza de detalhes: cada esquina, prédio e bar se incorporam à ficção. 

Mirela poderia ser a mulher da porta ao lado, alguém com quem se cruza no semáforo, um dos rostos anônimos da cidade. Timerman ilumina a fragilidade de Mirela não apenas mediante o que é dito, mas sobretudo pelo que é silenciado. Os hiatos e a descontinuidade imprimem um ritmo constante ao romance, assim como a prosa vigorosa da autora. 

Copo vazio atualiza um tema enraizado na tradição literária: a fragmentação e o enlouquecimento feminino diante do abandono masculino. Se, de imediato, pensamos em uma linhagem mais longínqua, que parte de Dido, Medeia, Emma Bovary ou Marianne Dashwood de Razão e sensibilidade e chega até Mirela, não podemos esquecer uma importante personagem intermediária, já contemporânea: a Olga de Elena Ferrante em Dias de abandono. A escritora Timerman é uma leitora refinada, doutoranda em teoria literária, que tem como objeto de estudo tanto Ferrante como Karl Ove Knausgård. Ao contrário das personagens citadas, Mirela está no século 21, é jovem, não é casada — talvez só compartilhe com Olga, a protagonista de Ferrante, a entrega à vertigem causada pelo abandono e uma busca obsessiva por um outro desfecho, que, no fundo, já parece dado. 

As vivências de Mirela são narradas pela protagonista em suas sessões de análise, nos seus sonhos, nos bilhetes escritos para Pedro e nas mensagens trocadas entre eles. A presença das redes sociais é uma marca incontornável do presente, resultando em uma reatualização muito bem desenvolvida pela autora do drama clássico.

Há várias referências literárias que surgem através das leituras de Mirela, como Milena Busquets, Lydia Davis e Sophia de Mello Breyner Andresen. Em certo momento, já separada de Pedro, ela dá a entender que está lendo o conto “Saga”, de Andresen. Há algo nele tão diferente do romance de Timerman que no entanto insiste com um Leitmotiv: a Hans, o navegador e comerciante protagonista do conto, sempre parece faltar algo que lhe era devido, e a impossibilidade de voltar à sua terra natal é uma espécie de naufrágio. 

Já Mirela, com o avançar dos meses e dos anos, retorna ao que Pedro parece representar em sua vida, um abandono que ocupa nela uma posição privilegiada. Como no filme A mulher do lado, de Truffaut (1981), o passar do tempo e a reconstrução de uma vida e de outros vínculos afetivos parecem se obliterar quando ocorre o reencontro entre dois amantes: o passado volta com toda a sua força, aniquilando o presente.

Não se sabe bem o que em Pedro desperta tanto interesse em Mirela. Pedro é mineiro e carrega consigo outro sotaque, é habitado por outros territórios. Mirela, por sua vez, parece quase despida de suas próprias memórias afetivas e aparentement quer se inserir forçosamente nas de Pedro: em um de seus devaneios, imagina uma viagem a Minas, na qual “eles parariam para almoçar encostados em um balcão de qualquer espelunca de estrada, a estrada de Pedro, repleta de memórias dele das quais ela agora começaria a participar”. 

O anjo exterminador 

Não há nada que impeça a protagonista de deixar de lado sua obsessão com o sumiço do jovem mineiro, e a vivência desse abandono parece ser eco de alguma outra coisa. A paralisia de Mirela diante da sua dor lembra o filme O anjo exterminador, de Buñuel: não há nada físico que impeça os convidados de sair da casa onde ocorre o jantar; contudo, algo os torna reféns de grades imaginárias. Mirela sonha com projetos de casas amplas e sem portas, mas não consegue sair do refúgio que traçou para si mesma, a casa da mulher abandonada. Só a volta de Pedro poderia lhe restituir sua própria imagem. 

Timerman articula de forma engenhosa um episódio de desmarginação de Mirela quando esta se vê perdida, sem bateria no telefone, na periferia de São Paulo, em busca de um adivinho que lhe pudesse dar alguma notícia sobre o seu futuro com Pedro. A palavra desmarginação é associada à personagem Lila, da tetralogia napolitana de Ferrante, mas outras personagens da autora italiana também sofrem episódios fronteiriços. Em Copo vazio, Mirela aparenta ter completo domínio da cartografia do centro de São Paulo — seus deslocamentos são narrados com precisão de cruzamentos e esquinas. Porém, quando a protagonista abandona a área central e se aventura pela periferia da cidade, parece, ela própria, perder os seus contornos. As ruas fora do centro, para Mirela, não têm nome.

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Cultural.              

Quem escreveu esse texto

Francesca Cricelli

Poeta e tradutora, publicou Repátria (Selo Demônio Negro, 2015).