Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Contra os eufemismos, sem perder o humor

Em coletânea de ensaios, o jornalista Paulo Roberto Pires interpela o sujeito letrado que se calou ante a barbárie

25ago2022

Tudo indica que, na última década, o Brasil ressuscitou a estupidez de outrora. Sendo assim, em revide simétrico, Paulo Roberto Pires decidiu reavivar a inteligência sarcástica que fez oposição loquaz — e incômoda — a essa mesma estupidez. Por isso, nas coxias de sua prosa indignada sussurram figuras de fundo como Millôr Fernandes e Sergio Porto. Millôr lhe fornece também a epígrafe cáustica, prenúncio do que encontraremos neste livro, reunindo quatro anos de sua produção para as revistas Época e Quatro Cinco Um.

Isso porém não basta para resumir o trabalho de Paulo Roberto. Embora receba o mesmo santo incrédulo que organiza, por exemplo, o “Febeapá” de Stanislau Ponte Preta, seu alvo é outro. O que busca, sobretudo, é interpelar o sujeito letrado que se calou ou, pior, fez coro “diante do fascismo” emerso. E para fazê-lo ele junta à ironia depurada de seus guias a substância teórica e o ímpeto analítico dos círculos universitários, o que é muito original e bem-vindo.

Seu projeto intelectual e político, nessa obra, consiste em mobilizar — no combate ao cinismo e à selvageria vigentes — dois polos que raramente se sentam juntos e, se por acaso o fazem, entreolham-se com grande reserva: de um lado, a tradição teórica acadêmica; de outro, a crônica argumentativa feita no calor da hora.

Direto ao ponto

Para realizar sua síntese, escolhe um amálgama incendiário e saboroso: o sotaque solto da mesa de bar, esse fórum imprevisível onde as visões se expressam de forma mais frontal, os eufemismos se diluem, as evasivas amolecem, a política transborda e as coisas podem ser mais bem chamadas por seus verdadeiros nomes. “Das inumeráveis crises produzidas pelo bestiário no poder, a crise da linguagem é das mais insidiosas”, afirma no artigo “As palavras e o Coiso”, glosando o best-seller de Michel Foucault.

Eis aí possivelmente o seu principal assunto: a covardia, a omissão, a relutância de parte da intelligentsia brasileira, que tanto contribuiu para a escolha suicida de 2018. Irritado com a erudição vazia dos seus pares, Pires evoca constantemente o exemplo dos grandes “intelectuais públicos”. Surgem em seus textos nomes como Zola, Sartre, Arendt, Adorno, Pasolini, Orwell, Antonio Candido e outros — gente sofisticada, mas que soube simplificar suas equações mentais nas horas críticas. Sartre não hesitou ante a barbárie francesa na Argélia, Adorno não contemporizou com a lacração performática de 68, Pasolini chamou neofascistas de neofascistas.

Há ainda o panteão dos literatos de alta grandeza, ocultos ou nomeados nessas 240 páginas, fazendo-nos ver que Pires tem estofo para enfeitar seus argumentos, mas opta por outro caminho. O quadro de degradação nacional, afirma ele, “é tão complexo que chega a ser simples”. E recuperando a inversão provocativa do filósofo Georges Didi-Huberman, nos lembra que, em certas situações, “para saber, é preciso tomar posição”.

Ao falar diretamente em fascismo, Pires encara com objetividade o debate bizantino que nos distraiu tragicamente na eleição passada. Discutindo, há quatro anos, se o bolsonarismo era ou não fascista, escreve ele, “preferiu-se discutir se marola é tsunâmi” em vez de organizar uma defesa eficiente. É fascista, sim, decreta, apoiado entre outras coisas nos estudos de Jason Stanley. Com que nome deveríamos chamar um movimento político que absolutiza a desigualdade, protege a concentração patrimonial mais arcaica, mistifica o passado, defende ditadura e tortura, aposta no anti-intelectualismo e na patriotada, enaltece o patriarcado e a dominação branca, macha, hétero etc.?

Seu principal assunto são a covardia, a omissão, a relutância de parte da intelligentsia brasileira

Se os alvos de sua pena são os pensamentos “viciados no talvez” e os “riscos da complacência”, não poderia o autor incidir no crime de assemelhar-se àquilo mesmo que condena nas figuras do “intelectual adversativo”, do “intelectual sem posição” e do “coach de esquerda”. Essa trinca de personagens bem-pensantes se destaca em um vasto álbum de “isentões altivos”, “neutros de almanaque” ou “direitistas enrustidos”, “camelôs da moderação” vendendo “análises de salão” e “equilíbrio de anedota”.

Talvez por isso não tenhamos neste livro exatamente a “forma ensaio”. Quem der por essa falta, contente-se com a alegria terapêutica do riso e da forra brotando de uma alta expressividade e curando de algum modo a fratura entre experiência e linguagem — efeito da era Bolsonaro. Isso vem de uma articulação feliz entre a impostação popular e a erudita, enriquecida por uma aposta convicta na força da escrita literária. E o conjunto culmina na promessa de um debate público não prensado entre jornalistas que nada dizem e acadêmicos que ninguém entende. Sim, porque embora uma parte do primeiro grupo tenha capitulado miseravelmente, é inevitável reconhecer que a universidade também vem fracassando no dever de decifrar essa abjeção.

Alguns poderiam objetar a essa provocação dizendo que, a despeito de sua enorme qualidade, a prosa de Pires não dá conta do problema por completo porque não explica a adesão ao bolsonarismo no “andar de baixo” nem disseca a composição social dessa nova hegemonia. Não temos, de fato, uma antropologia ou uma sociologia estrito senso. No entanto, apesar da necessidade de tais pesquisas, esse não é o intento do autor. Quem nos fala é um sujeito inflexivelmente ético, que toma partido em favor da vida, da democracia e da dissonância, da justiça social e de um conjunto de valores que todos costumávamos chamar de “civilização”.

Diante do fascismo é baseado na ideia de que os intelectuais têm papel central na meleca que se instalou: alguns participaram da sua criação, outros se omitiram e outros se sentem na obrigação de ajudar a revertê-la. Paulo Roberto sabe do que fala: seus textos iniciais sobre o tema lhe custaram uma demissão sumária, prova do que estava — e continuou — dizendo.

De seu livro podemos dizer o que diz o próprio autor sobre Graciliano Ramos, no artigo “O pequenino fascismo tupinambá”: ele expõe o abismo entre a “excepcionalidade do escritor e a precariedade do país”.

Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

José Guilherme Pereira Leite

É escritor, ensaísta, crítico e professor universitário.