Laut, Liberdade e Autoritarismo,

As razões do protagonismo

Jornalista investiga como o STF foi de discreto colaborador do Executivo nos anos 90 a ator político acostumado aos holofotes

10abr2024

Em uma visita a Paris, Luís Roberto Barroso discursou, como presidente do Supremo Tribunal Federal, sobre as “razões de um certo protagonismo do Supremo”. Em resposta, ouviu do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy uma recomendação de cautela. “O senhor está pronto para uma nova presidência. Tenha cuidado, senhor presidente, foi um discurso excelente, eu entendi tudo. Trata-se de um discurso de orientação política, muito mais do que de orientação jurídica”.

O espanto de Sarkozy é compreensível. Não há par no mundo para o protagonismo que o Supremo alcançou na política brasileira. A pronunciada atuação teria sido provocada pelo arranjo institucional estabelecido pela Constituição de 1988 combinado a uma série de mudanças legislativas e contextuais. O protagonismo político do tribunal, por sua vez, teria impulsionado uma política de comunicação da instituição. Esse é, em linhas gerais, o argumento de Grazielle Albuquerque em seu Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF.

A jornalista Grazielle Albuquerque (Divulgação)

Trata-se de um inovador esforço de diálogo interdisciplinar entre comunicação e ciência política, apresentando uma análise das relações entre a cobertura da imprensa, a política de comunicação do tribunal e o seu crescente protagonismo político. A análise se concentra nos momentos iniciais de construção dessa dinâmica comunicacional, entre 1988, com a nova Constituição, e 2004, quando foi promulgada a Reforma do Judiciário. Também faz breves incursões por períodos mais recentes, marcados pelo julgamento do mensalão, a ascensão da Lava Jato e a crise das relações entre Executivo e Judiciário em 2022. A principal fonte de dados da análise é um conjunto de entrevistas com 24 profissionais com experiência na cobertura cotidiana do Supremo.

Escalada

Já no primeiro capítulo, são apresentados detalhes sobre o desenho de pesquisa e o conceito fundamental que orienta a investigação — o “agendamento estratégico”. O capítulo seguinte narra o processo de ampliação de poderes institucionais que marcou a história do Supremo a partir de 1988, apresentando uma linha temporal dessas transformações legislativas.

O terceiro capítulo é o centro da análise. Nele, Grazielle Albuquerque conta a história do nascimento da política de comunicação do Supremo. A assessoria de imprensa do tribunal, que em 1982 se resumia a um único profissional, advogado, foi se ampliando e se profissionalizando. De 1983 a 1995, a atividade passou a ser liderada por um jornalista que, com a colaboração de outros dois servidores, realizava fundamentalmente as funções de clipagem (monitoramento da mídia) e elaboração de relatórios. Em 1995, sob a presidência de Sepúlveda Pertence, o número passou de três para dez.

As atividades também se multiplicaram e passaram a contar com a produção interna de textos, imagens e vídeos colocados à disposição da imprensa. Simultaneamente, passou a se constituir informalmente o Comitê de Imprensa do Supremo, espaço físico destinado aos setoristas responsáveis pela cobertura jornalística do tribunal.

Entre 1997 e 1999, a assessoria foi formalizada como Secretaria de Imprensa e passou a contar com quinze profissionais. Em 2001, sob a presidência de Marco Aurélio Mello, esse número chega a 27. E, depois da criação da TV Justiça, no ano seguinte, salta para sessenta.

Um novo salto ocorre em 2004, com a criação da Rádio Justiça. A partir de então, o setor recebeu a denominação de Secretaria de Comunicação e passou a abrigar oitenta profissionais. A cobertura jornalística conheceu crescimento paralelo, ainda que não nas mesmas proporções. Combinados, esses processos ampliaram enormemente a visibilidade do STF e do Judiciário.

Com o julgamento do mensalão, o Supremo construiu a imagem de um super-herói anticorrupção

O quarto capítulo identifica dois marcos no processo de constituição de uma dinâmica de comunicação entre a assessoria do Supremo e o Comitê de Imprensa: o impeachment do ex-presidente Collor (1992) e a CPI do Judiciário (1999). Esses eventos teriam estruturado poderosos incentivos e oportunidades para os atores envolvidos — setoristas, assessores e ministros do Supremo. Por fim, a conclusão apresenta reflexões sobre os desafios de produzir conhecimento na fronteira entre comunicação e ciência política.

Nos anos 90, constituiu-se no Brasil um campo de pesquisa voltado a produzir explicações sobre as instituições judiciais e, especialmente, sobre o Supremo. A imagem pública do tribunal foi uma das primeiras preocupações desse campo e jamais deixou de ocupá-lo. Em toda essa produção, não faltam indicações de que a corte, por meio de seus ministros, é um ator decisivo na construção de sua própria imagem. Os elos pelos quais o tribunal produz sua reputação, no entanto, raramente são indicados.

Essa é a grande contribuição de Da lei aos desejos. A autora mostra como o STF se organizou institucionalmente para construir sua própria imagem, abandonando uma postura meramente passiva em relação à imprensa.

Encruzilhada

Essa organização mediada pela comunicação teve efeitos importantes. Nos anos 90, o Supremo se restringia à discreta imagem de colaborador na estabilização econômica promovida pelos outros poderes, sobretudo o Executivo. Na sequência, o tribunal mudou de imagem. Até 2012, esteve ligado a grandes debates constitucionais, representados pelos julgamentos sobre pesquisas com células tronco, aborto de anencéfalos e união homoafetiva. Com o julgamento do mensalão, em 2012, o Supremo passou a construir a imagem de um super-herói combatente da corrupção.

Atualmente, o tribunal se encontra numa encruzilhada. Nenhuma daquelas opções parece estar mais disponível. A cruzada moral contra a corrupção se revelou desastrosa, os grandes debates constitucionais estão interditados pelo conservadorismo do Congresso Nacional e a discreta colaboração com o governo para viabilizar a agenda econômica não parece mais suficiente para um poder tão acostumado aos holofotes. A situação se agrava se considerarmos a polarização ideológica que atravessa a sociedade brasileira e, desde os ataques do ex-presidente Bolsonaro, passou a atingir em cheio o STF.

Dadas essas circunstâncias, como será a imagem do Supremo nos anos 2020? Só o tempo dirá, mas Grazielle Albuquerque sugere que, ao Supremo, não faltam meios para construir uma nova imagem.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Jeferson Mariano Silva