Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A erosão explicada

Agravada e exposta pela pandemia, a deterioração das democracias no mundo e no Brasil é analisada em estudos recém-publicados

01jul2020 | Edição #35 jul.2020

A pandemia escancarou como nossas instituições políticas estão trabalhando na improvisação, sem conseguir saber se vão durar. Crises da democracia, de Adam Przeworski, e Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia, de Marcos Nobre, são livros que, de alguma maneira, ajudam a compreender o Brasil de hoje a partir de perspectivas diferentes mas que se complementam.

Questionados se acham que seus filhos terão uma vida pior que a sua 60% dos entrevistados nos Estados Unidos e 64% na Europa responderam que sim. É a primeira vez desde 1820 que uma geração espera viver pior do que a de seus pais, diz Przeworski. Como chegamos a este ponto? O livro soma-se aos trabalhos que têm sido publicados recentemente sobre a morte, o fim, e tudo o mais que remeta à crise da democracia tal qual a conhecemos. Não que Przeworski tenha a resposta, mas ele dá boas pistas.

A primeira é que o Estado de bem-estar social está na lona. Até 1978, aumentos salariais seguiam crescimentos de produtividade e a distribuição de renda por tipo de ocupação era estável. Isso era possibilitado pelo fato de operários da indústria estarem organizados em sindicatos protegidos pelo Estado e, com pleno emprego, terem o monopólio sobre o mercado de trabalho. As políticas do governo eram submetidas a uma lógica parecida: um aumento da tributação reduziria os investimentos e o consumo futuro. Por sua vez, diante das demandas salariais e tributárias moderadas, as empresas não só investiam, mas conviviam com os sindicatos e a democracia. Com isso, afirma Przeworski, era possível gerar um “acordo de classes democrático”.

Desde os governos Reagan e Thatcher nos anos 1980, esse equilíbrio entre capital e trabalho foi rompido. O livre fluxo de capital contribuiu para a estagnação dos salários das camadas mais baixas, ainda que a globalização tenha reduzido o custo de vida com a enxurrada de bens importados. Mas chegou o momento em que essa compensação parou de funcionar. A crise de 2008 só veio agravar esse quadro.


O cientista político Adam Przeworski [Divulgação]

A segunda contribuição de Przeworski é traçar as alterações no âmbito político, mais especificamente o desgaste dos sistemas partidários tradicionais. Os dois tipos de organização que costumavam representar a classe trabalhadora — os partidos social-democratas e os sindicatos — já não conseguem mais fazer isso. Os reais perdedores da globalização tendem a votar na direita. Ainda que as origens desse comportamento continuem nebulosas, ele constata que “à medida que os partidos democráticos vão se aburguesando, os partidos de direita se proletarizam”.

Contudo, isso não basta para dizer que a democracia está em crise. O que Przeworski tem em mente quando diz “democracia” é “um arranjo político no qual as pessoas escolhem governos por meio de eleições e têm uma razoável possibilidade de remover governos de que não gostem”. Não importam quantas barbaridades o governante diga ou faça, desde que eleições continuem ocorrendo e a oposição tenha chances reais de virar o jogo.

O verdadeiro perigo hoje não é de um golpe à moda antiga, com tanques na rua. Até porque “os militares praticamente desapareceram da cena política”, diz Przeworski. Por aí já se vê que o foco do livro são Europa e Estados Unidos. Essa frase valeu nota para dizer que a situação do Brasil merece atenção. Contextos à parte, o ponto é destacar os riscos de uma “subversão sub-reptícia” da democracia. Isso ocorre quando mecanismos legais existentes em regimes democráticos são utilizados para fins antidemocráticos. A sub-repção é um processo pelo qual o governo adota certas medidas, nenhuma manifestamente inconstitucional ou antidemocrática, mas que, uma vez acumuladas, destroem pouco a pouco a capacidade da oposição de tirar o governante do cargo.

Cultura política

O livro de Marcos Nobre traz uma perspectiva menos institucionalista que o de Przeworski. Democracia aqui é avaliada não como um mecanismo para processar conflitos, mas em termos de “cultura política”. E é esmiuçando a cultura política bolsonarista que Nobre analisa a conjuntura atual. Tendo em vista trabalhos anteriores sobre o “pemedebismo” e Junho de 2013, Nobre traça a corda bamba sobre a qual a vida política brasileira vai se equilibrando.

Junho de 2013 foi um contraponto ao pemedebismo, uma cultura política conservadora cuja gestação coincide com a da Nova República. Por vezes Nobre usa “pemedebismo” para denominar grupos partidários efetivos, como as bancadas congressuais que permitiram ao PSDB e PT formar coalizões e governar. Porém, o fundamental é compreender como se dá a relação entre sociedade e sistema político. O que diferencia a mobilização pela redemocratização e Junho de 2013 é que “a nova energia social e política que emergiu em Junho não encontrou, em sua maior parte, canalização institucional”. Ao contrário, o sistema político fechou-se ainda mais. O impeachment de Dilma é retratado por Nobre como um expurgo do sistema, que “entregou um pedaço de si próprio ao linchamento público”, na esperança de que o “boi de piranha” apaziguasse a sociedade. O que vimos foi tudo, menos apaziguamento.

O perigo não é um golpe à moda antiga, mas a adoção de medidas legais para fins antidemocráticos  

Przeworski e Nobre concordam que as instituições representativas só absorvem conflitos se todos tiverem o direito de participar dessas instituições. Os partidos têm um papel fundamental nisso. Sem se abrir para a sociedade naquele momento crucial, o sistema político perdeu o controle do seu papel de mediação entre a sociedade e as instâncias do poder e criou oportunidade para o improviso. Bolsonaro conseguiu atrair para si, com seu discurso antissistema, o “sentimento de exclusão da arena política”. É preciso, diz Nobre, afastar a hipótese de que o presidente seja burro ou louco para ver que o método de Bolsonaro é o caos.

O núcleo duro do bolsonarismo é formado por 12% dos eleitores, aos quais se soma um parcela mais volátil para compor os cerca de 30% que acham o governo ótimo ou bom. Esse número garantiria que Bolsonaro evitasse o impeachment e chegasse ao segundo turno em 2022. Mas por que o presidente não usou a crise sanitária para aumentar sua popularidade? Para Nobre, a pandemia faria Bolsonaro ser “enquadrado” na normalidade do sistema político, uma vez que exigiria que ele aceitasse as regras da democracia e governasse. Isso o faria ir contra aquele núcleo duro e enfraqueceria sua capacidade de mobilização. Para Nobre, Bolsonaro não será domado por indivíduos ou instituições, nem construirá uma base de apoio no Congresso, como governos anteriores.

Contudo, pode haver mais improvisação onde Nobre vê estratégia. Para além da retórica do porão, é difícil ver como o governo Médici se encaixa em um “autêntico modelo de governo para Bolsonaro”. É possível que os arroubos de Bolsonaro e sua falta de propostas o aproximem mais de Jânio do que dos generais da linha dura. As Forças Armadas assumiram o papel de “organização transversal” do governo, porque Bolsonaro desarticulou órgãos de controle, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Ministério Público Federal e a Polícia Federal, com a condescendência de boa parte do mundo político.

A criação de três feudos — o lavajatismo entregue a Moro e agora órfão, o mercado financeiro a Paulo Guedes e o agronegócio a Tereza Cristina — é um indicativo de que Bolsonaro terceiriza seu governo como terceirizou a caneta orçamentária para o Congresso. E vai terceirizar a influência que poderia ter na política local, uma vez que não conseguiu criar o Aliança a tempo das eleições municipais. Um presidente que recua para sua base mais fanática em vez de usar a pandemia para conquistar mais eleitores das classes média e alta é um presidente acuado.

Aliás, esse é o principal motivo pelo qual o impeachment não avança. Para o sistema político, Bolsonaro vem a calhar. Certamente a articulação política com o Centrão não será igual à de PSDB ou PT. Diferentemente do que ocorre em outros países que compõem o quadro da “crise democrática”, no Brasil o maior risco é de a desarticulação tornar os militares cada vez mais “indispensáveis”. E isso não será improvisado, pois o ensaio já começou.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Raphael Neves

Doutor em ciência política pela New School for Social Research, professor de direito da Universidade Federal de São Paulo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.