Literatura,

Uma outra consciência

Com clima noir e alucinatório, romance vencedor do Oceanos convida a refletir sobre como lemos literatura

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

Há, ao menos, duas maneiras de ler Karen, romance da portuguesa Ana Teresa Pereira, vencedor do prêmio Oceanos de 2017 e lançado no Brasil em fevereiro. A primeira delas, não tão instigante, consiste em partir das inúmeras referências cinematográficas e literárias espalhadas na narrativa para esboçar respostas às questões que a assombram. Mas, embora seja divertido encontrar esses rastros, os filmes de Visconti e Hitchcock ou as tramas de Henry James pouco ajudam a descobrir quem é Karen ou a entender como a narradora do romance se descobre, de repente, no lugar dela.

A narrativa de Ana Teresa Pereira não faz concessões a interpretações unívocas, sejam metalinguísticas, sejam psicológicas, sejam apenas frutos de uma meticulosa urdidura das pistas deixadas ao longo do texto. Tampouco há lugar para uma leitura de cunho sócio-histórico. Ainda assim, o fato de ter sido escolhido pelo júri do Oceanos, em tempos tão conturbados, o melhor livro em língua portuguesa não aponta para um desejo de despolitização da crítica literária, e sim nos lembra que a literatura expressa sua resistência à desumanização do outro também pelo exercício da imaginação.

Isso leva à segunda forma de encarar a leitura. Nela, encontrar respostas importa tanto quanto diferenciar memória e imaginação: não muito, se o objetivo for chegar a uma impressão plausível (e interessante) do que é o humano. De fato, o romance leva ao limite a confusão entre os diferentes estados de consciência e parece querer afrontar também certa corrente de leitores rabugentos que rejeitam a possibilidade de a literatura evocar o real não pelo seu viés representacional, mas por efeitos quase alucinatórios. 

A ideia de alucinação é cara a Ana Teresa Pereira: “Todos nós criamos a nossa realidade. Algumas das minhas personagens levam isso ao extremo. Talvez estejam a enlouquecer, mas essa é a sua realidade”, disse, em entrevista ao jornal português Público, em 2010, após publicar o romance Inverness. Na primeira crônica do volume O ponto de vista dos demónios, de 2002, a autora já afirmava também o gosto por “histórias de duplos” e a impressão de que os filmes têm um modo particularmente eficaz de evocá-las: “No cinema, como nos sonhos, os estados de alma podem transformar-se em imagens, uma personagem pode desdobrar-se infinitamente”. O fascínio por essas temáticas, bem como a influência do cinema sobre sua maneira de narrar, atravessa boa parte dos mais de trinta livros publicados por Ana Teresa e dá origem ao precioso exercício de transfiguração a que assistimos em Karen.

Romance

No romance, uma pintora de 25 anos, moradora de Londres, acorda em uma cama que não é a dela, usando roupas que não lembra ter vestido, sob os cuidados de Alan — um marido tão bonito quanto desconhecido — e de uma governanta de idade e beleza movediças. A protagonista ouve chamarem-na Karen, nome que não reconhece, da mesma forma que não se vê no retrato ao lado da cama, o qual, no entanto, apresenta rosto idêntico ao seu. 

A autora afirma que concebeu ‘Karen’ como um thriller policial ‘abstrato’

Dizem a ela que sofrera um acidente ao atravessar uma queda-d’água. Contam, mais tarde, que se casara com o escritor Alan havia alguns anos, e que desde então moravam naquela casa, na distante região de Northumberland. De resto, descobre que completará 25 anos em breve, haverá uma festa, receberá uma herança.

Tudo parece suspeito, mas, no correr dos dias, a vida de Karen vai se ajustando à narradora quase tão naturalmente quanto os vestidos que encontra no armário — embora ela intua, nessa acomodação, a presença de uma dissonância. Da vida pregressa restam mais lembranças que saudades. A exceção é a amizade de um velho galerista ao qual a protagonista associa uma imagem quase impalpável, como se vivessem em épocas diferentes e houvessem perdido, por pouco, a possibilidade de se tocarem — um descolamento que sente agora em relação à nova vida. O galerista, diz ela, tinha um rosto marcado pelo tempo como o de Beckett, um rosto que emerge “quando a alma já está tão perto como a de um animal”.

Esse tipo de proximidade à alma das coisas é o que a narradora recorda buscar quando pintava: “Um outro estado de consciência”, como em uma “religião antiga feita da ligação com as coisas”. Mas é, também, como Alan define sua experiência de escrever, “um estado de graça”. 

É ainda, suspeitamos, o que leva Karen a aventurar-se repetidas vezes para além da queda-d’água, a recolher-se num espaço entre cascata e rocha. É, por fim, o que o próprio romance engendra, com imagens que atingem o exato ponto entre detalhamento e precariedade, necessário para que o cenário possa se fazer existir na consciência do leitor. Quando a narradora se embrenha nas ruas estreitas de Northumberland e vê a si mesma, em outro tempo, a correr ali, é uma alegoria da experiência de leitura o que ela nos apresenta. “Um sopro de gelo percorreu-me o corpo”, ela diz. “A impressão foi tão forte que olhei por cima do ombro.”

A autora afirma que concebeu Karen como um thriller policial “abstrato”. Há, de fato, só uma cena — na festa dos 25 anos — em que o mistério que antes se restringia à consciência fragmentada da narradora se materializa. O leitor se mantém pelo resto do tempo em suspenso, mais por compartilhar os movimentos incertos desse estado mental do que por esperar uma reviravolta súbita. Eventos como o susto dos dedos que, de repente, não sabem mais desenhar são experimentados, assim, menos como revelações do que como sensações vívidas.

Durante a leitura de Karen,  as consciências da narradora e de seu duplo se fazem metamorfosear em algo tangível ao leitor. Ao chegar ao fim, somos deixados no lugar de onde partimos, tendo colhido apenas vestígios. Não se espere, portanto, uma trama como a do filme Rebecca, que reconhecemos em diversos elementos do romance. O efeito da leitura é mais próximo ao de O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais. Assim como Resnais, Karen paga tributo a Hitchcock e à atmosfera noir, mas, nos dois casos, o impacto persistente é o da ausência de balizas e o da temporalidade virada às avessas. 

Quem escreveu esse texto

Lígia G. Diniz

É autora da tese Por uma impossível fenomenologia dos afetos, premiada pela Capes em 2017.

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.