Literatura,

Terron e a escrita da fantasmagoria

Memória e alucinação dão o tom da narrativa

08nov2018 | Edição #2 jun.2017

Posto em uma tradição latino-americana, Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron, funciona como um arquétipo bem-sucedido do romance autobiográfico contemporâneo — temáticas centrais: memória, ditadura e desaparecimento; frases em elipse, personagens que ora protagonizam episódios de horror e alucinação, ora subvertem relatos históricos.

O sexto romance do escritor mato-grossense, narrado em segunda pessoa, tem na figura de Curt Meyer-Clason, espião, tradutor e místico, o seu ponto de tensão narrativa. Entre estradas, regiões fronteiriças, terrenos escolares, Meyer-Clason entabula uma conversa consigo mesmo de maneira fragmentada, como uma sequência de pesadelos interrompidos.

Ao longo das mais de 450 páginas, Terron trabalha a escrita da fantasmagoria, artifício que remete, por exemplo, à obra do escritor chileno Roberto Bolaño. Em cada capítulo, a sensação de um vulto sempre à espreita ou de uma calmaria esquisita antes da pior das tempestades. Bolaño pensava a literatura como um tipo de experiência viva da linguagem, ofício perigoso no qual a busca por universos desconhecidos é característica básica. Nesse contexto, Noite dentro da noite torna-se experimento literário significativo. Porém, durante algumas passagens, soa exagerada a tentativa do escritor em legitimar o padrão contemporâneo da repetição e das longas metáforas. Analogias como “(…) as pernas cabeludas das freiras lembravam as da aranha (só na capilaridade; as freiras tinham menos pernas que a aranha)” enfraquecem o texto.

A escolha do nome que conduz o romance também remete ao escritor chileno. Curt Meyer-Clason foi tradutor e escritor alemão, responsável por traduções de Guimarães Rosa, Mário de Andrade e João Ubaldo Ribeiro. Em 1942, Meyer-Clason foi preso no Rio Grande do Sul acusado de espionagem para o governo nazista. Durante cinco anos ele ficou confinado na Ilha Grande, local onde o seu contato com a literatura foi crescente. A história soa como um dos verbetes de La Literatura Nazi en América, obra inédita no Brasil, na qual Bolaño narra perfis de escritores nazistas de várias nacionalidades. Ao trazer o tradutor para a ficção, Terron repensa o contexto político, colocando lupa subjetiva em um personagem pouco importante para o quadro dos grandes fatos históricos.

A justificativa do romance está no acidente que afeta o protagonista, ação descrita já na primeira página. A brincadeira de pique-esconde é um ponto irônico no argumento da narrativa, afinal, Meyer-Clason não obteve êxito no jogo, porém, após bater a cabeça enquanto tentava sumir do alvo do pegador, passou a viver em processo contínuo de ausência e presença. Um sumiço ficcional virou, então, um desvio absoluto. Tem início O Ano do Grande Branco, período no qual as recordações daquele menino de onze anos são meros fiapos, nada faz muito sentido, convulsões são comuns e a violência toma corpo no seu cotidiano — tanto na esfera privada quanto na coletiva.

O romance desenvolve tópicos nos quais a memória do terror é afastada do discurso dominante e situada no eu que sobrevive

A narrativa apresenta um recorte geográfico ajustado à alegoria fantasmagórica: áreas de transição entre o Brasil e o Paraguai, no final dos anos 1970. Esses espaços limiares de nações ajudam na descrição partida da memória, pois a paisagem demonstra influências culturais e estéticas difusas. Não existe relevo definitivo, mas algumas camadas passíveis de apreensão, entre os caminhos até a escola, os cômodos da casa e as ruas sem asfalto. No mapa proposto por Terron, encontram-se apenas pistas do que se observa ao redor, sem detalhes ou traçados precisos.

Noite dentro da noite é um romance que denota a pretensão do autor em estabelecer sua obra dentro de uma linha teórica. Ao lado de títulos como A resistência, de Julián Fuks, e Cabo de guerra, de Ivone Benedetti, o livro desenvolve tópicos nos quais a memória do terror é afastada do discurso dominante e situada no eu que sobrevive, no alguém que esteve à margem no passado e, agora, ocupa o papel principal. 

Quem escreveu esse texto

Priscilla Campos

Mestranda em teoria literária, edita o site Fuga para oeste.

Matéria publicada na edição impressa #2 jun.2017 em junho de 2018.