Literatura,

Nas águas da Guanabara

Nos contos do sambista, a inventividade ficcional enforma uma reconstituição histórica rigorosa

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Dois fatores parecem pesar para que Nei Lopes ainda não seja devidamente reconhecido como um importante autor de livros.

Um deles é ele ser sambista. Na imprensa e no nosso imaginário, essa categoria permanece separada — e minimizada — diante de outras como “compositor” e “artista”. Se existe quem subestime o Chico Buarque romancista, entendendo que ele deveria se restringir à música, imagine um negro crescido no subúrbio do Rio de Janeiro…

O outro é Nei ser um estudioso da história afro-brasileira e um intelectual ativo nos debates em torno dessa história. Com frequência, reserva-se a ele o papel do “chato”, do que enxerga racismo em tudo (ou seja, em tudo o que nos recusamos a enxergar). Mesmo nos ambientes acadêmicos, seu trabalho é pouco levado em conta. Talvez essa situação possa mudar graças ao Dicionário da história social do samba (2015), que valeu a ele e a Luiz Antonio Simas os prêmios Jabuti de melhor livro de não ficção e de livro do ano.

Sua produção ficcional, pequena em relação à sua bibliografia de mais de vinte títulos, chega ao público atrapalhada por esses preconceitos. E isso torna mais significativo o recente livro de contos Nas águas desta baía há muito tempo: contos da Guanabara.

Por ser um conjunto de narrativas curtas e permeadas por bastante humor, pode passar a impressão de ser uma obra menos ambiciosa do que outras de Nei sobre a presença afro-brasileira na vida carioca, como Mandingas da mulata velha na Cidade Nova (2009) e Rio negro, 50 (2015).

Esses dois romances, embora saborosos, carregam o peso do excesso de informação. Neles, o autor não disfarça o desejo de transmitir o muito que sabe a leitores que pouco conhecem os personagens e acontecimentos a que os livros se referem.

Nos dezoito contos de Nas águas desta baía há muito tempo, as ações se passam do século 16 ao 20, o que indica um conhecimento até mais amplo por parte do autor. Mas o rigor histórico não oprime a inventividade. É difícil saber se todos os personagens existiram. E pouco importa, pois esse mistério dá maior prazer à leitura. Percebe-se o Nei estudioso, mas percebe-se com mais vigor o Nei ficcionista.

Dentre os ótimos tipos do livro, vale destacar alguns, como Maria-Angu, figura do final do século 19. É descrita como “uma preta de quase 2 metros de altura; e pesava bem uns 150 quilos”. Filha de escrava com filho de fazendeiro, fez de tudo um pouco, de vender angu no porto a montar um bordel flutuante, não deixando de salvar um monte de gente de uma barca que naufragou. O final de Maria é trágico, com o amor a destruí-la, mas a história é deliciosa.

Valonguinho

Valonguinho, “pouco mais de 1 metro de altura”, “um resto deixado no velho mercado de escravos”, acaba cultuado como santo nos bairros negros da zona portuária. Sem perder a ternura, Nei dá uma aula sobre o horror do comércio de africanos escravizados e a importância do candomblé na resistência à opressão.

Nei é um dos artistas e intelectuais que têm recontado a história do Rio e do país pelo avesso. Faz isso com seriedade e, também, com graça

Bento sem Braço teve mais de trezentos filhos, pois sua função era “procriar raça de crioulo escravo para o imperador”. Apesar da aparente boa vida, virou fugitivo e bandido, morrendo nas mãos de milicianos. Mais uma vez, Nei mistura horror e humor em ótima narrativa.

Também há um conto protagonizado por Lima Barreto. E o seguinte, pelo pai de Lima Barreto. Heróis negros como João Cândido, líder da Revolta da Chibata, aparecem ao longo do livro. Outros nomes reais surgem fora de contexto, servindo às troças do autor.

Nei é um dos artistas e intelectuais afro-brasileiros que têm recontado a história do Rio e do país pelo avesso. Faz isso com seriedade e, também, graça, como prova Nas águas desta baía há muito tempo. E como provam, desde a década de 1970, os sambas que cria e que o asseguram entre os melhores compositores nacionais.  

Quem escreveu esse texto

Luiz Fernando Vianna

Jornalista, é autor de Meu menino vadio (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.