Infantojuvenil,

Dialética da pelúcia

Crítica ao mundo do trabalho dá o tom em clássico infantil protagonizado por urso

12jan2020 | Edição #30 jan/fev.20

Enquanto imagens de ursos ganham espaço na paisagem urbana, estampando de rótulos de cerveja e marcas de bar a placas de escolas particulares, os ursos vão perdendo a batalha pela sobrevivência. A nossa capacidade de produzir e consumir fofura parece diretamente proporcional à nossa incapacidade de agir para alterar o destino das espécies ameaçadas. Em vez disso, deixamos que eles se transformassem em símbolos, balas de goma, presentes diplomáticos — no caso dos pandas —, memes ou personagens eternos de livros para crianças.

Foi do livro infantil, certamente, que o urso migrou para a cultura pop dos adultos contemporâneos, num sintoma, entre muitos outros, da infantilização estética que vivemos nos nossos dias. Sem constrangimentos, marmanjos e mulheres feitas se derretem por ursinhos carinhosos.

Sempre sob o nosso comando, os ursos estão invariavelmente carregando mensagens políticas. Ursos-polares solitários se tornaram clichês do jornalismo ambiental em matérias sobre a emergência climática. A escritora japonesa Yoko Tawada foi além e explorou no romance Memórias de um urso-polar (Todavia) a obsessão dos alemães com o urso Knut, que nasceu no zoo de Berlim para se tornar uma estrela das redes sociais, antes de agonizar em praça pública.

De onde vem essa força simbólica tão persistente e fascinante para escritores e leitores? Começo arriscando uma hipótese ecológica: o hábito da hibernação faz do urso um personagem especialmente sensível não só às mudanças de estação, mas aos diferentes tempos da narrativa. A nossos olhos, nenhum outro mamífero parece tão sintonizado com o ritmo do que acreditamos ser a “natureza”. A hibernação é um antigo desejo humano e um recurso literário poderoso. Dormir profundamente e acordar muito depois, num mundo transformado, é um elemento de contos tradicionais que até hoje rende boas histórias.

Caverna

O selo Boitatá, da editora Boitempo, publicou um clássico do gênero: O urso que não era, do mestre norte-americano da animação Frank Tashlin. Neste livrinho lindo, o tema da hibernação é a premissa: ao notar a chegada do outono, o Urso entra numa caverna para hibernar. Quando desperta, já na primavera, uma fábrica havia sido construída em cima de sua toca.

Nas ilustrações que retratam tanto a construção das instalações como a fábrica em funcionamento, Tashlin proporciona uma leitura à parte. Em contraste com o texto seco e puramente descritivo, os desenhos são detalhados e movimentados, com piadas gráficas, pegadinhas e piscadelas para o leitor. Há nesta obra de 1946 uma consciência da espacialidade da página do livro que é rara ainda nos melhores ilustradores de hoje.

Ao acordar e ser encontrado por um dos chefes da fábrica, que tenta colocá-lo para trabalhar, o Urso argumenta que é um urso e não “um homem bobo que precisa fazer a barba e usa casaco felpudo”. Spoiler: ele não convence e vai sendo empurrado para um destino chapliniano de operário.

As sucessivas salas crescem em tamanho e riqueza de detalhes conforme o grau hierárquico do interlocutor do herói: do terceiro vice-presidente ao presidente da empresa, as salas ganham mais espaço, objetos e funcionários página após página. É divertido se demorar nas minúcias de cada espaço — cada vez com mais lixeiras, mais telefones, mais quadros na parede, mais secretárias.

O reencontro do Urso com sua identidade de urso é o desenlace, não sem passar um longo período trabalhando na fábrica e tendo visitado um zoológico e um circo, nos quais não foi aceito. A história consegue se desviar dos clichês para se firmar como crítica original do mundo do trabalho, funcionando quase como um cavalo de Troia.Com a promessa de mais um livrinho de urso, acabamos lendo um questionamento à exploração do trabalhador. O Urso, a certo momento, entrega os pontos, desiste de provar que é um animal e se torna um operário, assumindo uma identidade que não é a sua.

Nos dias de hoje, os ursinhos têm se prestado prioritariamente a mensagens ecológicas, como a que Rita Lee dá em seu Amiga ursa (Editora Globo), que narra a trajetória de uma ursa que é capturada na Sibéria e vem trabalhar num circo no Brasil. Pouco imaginativo e muito explicitamente moralizante, o conto de Rita Lee se mostra convencional. Na história de Tashlin, a desumanização da fábrica, do circo e do zoo é que vai tornando o protagonista cada vez mais “humano”: ele se torna humano ao ser tratado de forma desumana. É a desumanidade a nossa característica mais humana.

Criada por um animador com passagem pela Disney, entre outros estúdios de Hollywood, e publicada por uma editora que politiza sua linha editorial para crianças, a mensagem política de Tashlin não deve ser desprezada.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.