Infantojuvenil,

Declaração de amor às vovós japonesas

Lembranças de quatro netas sanseis que escrevem e ilustram contam também uma história de imigração

29out2018 | Edição #16 out.2018

Eu também tive uma avó japonesa. Me transportei para os meus tempos de menina ao ler essa pequena joia das sanseis — netas de japoneses — Janaina, Mika, Raquel e Talita. Um passeio pelas quatro estações do ano nos dá o exato sabor da infância amorosa e mágica que cada uma delas viveu junto de suas obaatians. Quando a gente é pequena, casa de vô e vó tem sempre um aconchego diferente. E algumas vezes, só depois que crescemos, conseguimos perceber as nuances que transformavam aqueles lugares em cenários perfeitos para dias mais felizes.

Cinco sentidos

A comida é um elemento muito importante em todas as culturas e um dos jeitos mais gostosos de se conhecer os hábitos de um povo. Neste livro, receitas do verão, outono, inverno e primavera costuram histórias entre avós e netos. Enquanto aprendem a fazer origami ou descobrem o prazer de colecionar folhas dentro de um álbum, podem sair à caça de ingredientes para um prato ou escutar sobre lendas japonesas. As autoras rememoram momentos vividos sob uma espécie de aura encantada — simples mas sofisticada e delicada.

As quatro autoras, que também são ilustradoras, construíram belas polaroids de uma relação baseada não só no afeto, mas na experiência tátil, olfativa, visual e principalmente gustativa, vivida enquanto crianças. Papel, linha, água, terra, plantas, os animais e o clima da Terra são experimentados num mundo não digital que hoje nos faz tanta falta. 

Talvez eu esteja sendo um tanto saudosista quando constato que minha própria filha não teve a oportunidade de conviver com meus avós. Mas a tradição passa de um jeito quase inexplicável. Os livros cumprem a importante função de documentar os traços, as cores e as sensações. Eles plantam em nós sementinhas de imaginação que florescem mais cedo ou mais tarde. Daí a gente sente uma vontade louca de querer saber mais, de visitar lugares distantes, de conversar com outras pessoas e ler outros livros sobre aquele assunto.

Foi através de outro livro (Corações sujos, do Fernando Morais) que meus primos e eu descobrimos passagens da história de nossos avós e bisavós que estavam completamente nubladas pelo tempo. Episódios graves da época da Segunda Guerra Mundial no Brasil, quando os imigrantes dos países do Eixo foram considerados inimigos da pátria. Entre eles estavam os japoneses, que sofreram várias retaliações mundo afora. Aqui não foi diferente. Por conta de uma ordem de Getúlio Vargas, muitos japoneses se revoltaram e tiveram um comportamento inapropriado. Houve um grupo que não acreditava que o Japão tivesse perdido a guerra e conflitos aconteceram dentro da colônia. Uma passagem muito doída que resultou em prisões e mortes. Assunto seríssimo que ainda hoje é passado a limpo.

O impacto oriental foi maior em minha personalidade do que em minha aparência

A minha experiência de ser sansei por parte de pai ocupa um espaço imenso em minha vida hoje. Eu acho que antes nem me dava conta disso com tanta lucidez. Foi justamente após uma visita ao Japão em 2005 que percebi o peso da minha família em mim. Tenho ascendência portuguesa por parte de mãe e convivi bastante com esta parte de nós que mora em Maceió. Mas acredito que o impacto oriental foi maior em minha personalidade do que em minha aparência.

Um episódio de vergonha: não falava japonês e estava em Tóquio com alguns amigos. Alguém me perguntou por que eu, sendo neta, nunca tinha aprendido mais do que algumas palavras e expressões. Aquele momento bateu fundo na minha alma. Faltou interesse de minha parte? Não passei tempo suficiente com meus avós? Por que isso aconteceu? Justo comigo, justo com uma pessoa disposta a aprender mais sobre história, outros povos, idiomas. 

Aulas de japonês

O resultado foi a minha matrícula na Associação Nipo-Brasileira de Belo Horizonte, cidade onde moro. Por quase três anos aprendi a ler e a escrever o básico e continuo hoje a estudar por conta própria em casa.

Acho fundamental estarmos atentos às nossas origens para valorizá-las e assim entender melhor esse mundo onde vivemos. Por isso a leitura de Vovó veio do Japão é tão gostosa e envolvente, seja o leitor criança ou adulto. Exercício de sensiblidade só faz bem. Além dos textos, a parte visual também é deliciosa e duvido que alguém não sinta vontade de sair para comer ou experimentar fazer em casa as receitas que estão ali completas no final do livro. Bom apetite.  

Quem escreveu esse texto

Fernanda Takai

Cantora e compositora, escreveu O cabelo da menina (Sesi-SP).

Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.