Arte, Humor,

Linhas, rabiscos & borrões

Admirador de Saul Steinberg, Millôr desenvolveu uma obra gráfica inovadora, marcada pelo traço despojado e pela valorização da ideia

01set2018 | Edição #15 set.2018

Se a primeira impressão é mesmo a que fica, Millôr: obra gráfica conquista logo na folheada inicial. A compilação de trabalhos desse grande nome das artes brasileiras é coisa rara — apenas Desenhos, pioneiro livro organizado por Ivan Fernandes em 1981 (com prefácio de Pietro Maria Bardi), apresentou uma amostra ampla de sua obra. Por isso, é inevitável o entusiasmo com a  nova publicação. A qualidade editorial, o projeto gráfico, a quantidade de páginas e a variedade e riqueza do trabalho de Millôr Fernandes (1923-2012) asseguram a percepção positiva. A capa, com o título aplicado sobre um irreverente trabalho em colagem, não deixa dúvidas: o livro aborda a produção gráfica do artista multifacetado que também foi escritor, dramaturgo, editor, poeta, tradutor — e jornalista.

“A obra gráfica dele transpira, 99%, jornal”, diz o caricaturista Cássio Loredano, um dos organizadores. Boa parte da produção de Millôr foi desenvolvida em colunas de revistas e jornais, espaços em que tinha autonomia para criar com grande liberdade: temas, desenhos, textos, composição, elementos tipográficos. Admirador do romeno naturalizado americano Saul Steinberg (1914-99), cujo trabalho apresentou aos outros cartunistas da geração Pasquim, como Ziraldo e Jaguar, Millôr é representante do desenho e cartum moderno, pautado pela valorização da ideia, consciência do uso dos elementos gráficos e uma frequente aposta no traço despojado. 

Mas, ao contrário de Saul, que se dizia “escritor” no sentido intelectual do termo — da pessoa que senta para planejar sua ideia — e se notabilizou pela síntese do cartum mudo, Millôr frequentemente envolveu seus desenhos em balões de fala, textos, frases, “poemeus”, haikais. Em seu quadrado no Jornal do Brasil, tinha prazer em rodear o cartum com anotações e comentários que podiam aparecer na vertical ou mesmo de ponta-cabeça. Com uma produção híbrida, sem apego a programas estéticos que unificassem a sua arte, Millôr está fora de qualquer categoria. Livre como um táxi. 

O catálogo da exposição realizada em 2016, no Instituto Moreira Salles do Rio, que chega a São Paulo em setembro, tem a desafiadora tarefa de organizar os quinhentos desenhos originais selecionados — o mais antigo é datado de 1955. As inúmeras abordagens do artista se sucedem em páginas que ora ressaltam a expressão plástica impactante de um único desenho, ora expõem um punhado de trabalhos — muitos deles cartuns escrachados e de traço rápido. É perceptível a intenção de aglutinar em páginas duplas conjuntos de desenhos com assuntos em comum, reforçando assim a ideia de temas recorrentes e possibilitando comparações interessantes. 

Há, por exemplo, uma dupla com três cartuns, todos em situações diferentes, mas sempre com a mesma frase: “eu lavo, você enxuga”. O cartum em formato maior apresenta, em garatujas sutis, dois minúsculos faxineiros pendurados na fachada de um enorme edifício representado por linhas quadriculadas que ocupam praticamente todo o desenho ­— recurso de ilusão gráfica tão ao modo de Saul.

Millôr por Millôr

A obra de Millôr foi estruturada em cinco capítulos temáticos, sem preocupação cronológica. A proposta é pertinente se levarmos em conta que o artista não desenvolveu, em sua carreira, fases claramente distintas. “Millôr por Millôr” explora a conhecida autorreferência e uma de suas mais notórias características, a objetualização dos elementos tipográficos do seu próprio nome. “Pif-Paf” exibe sua produção para a coluna que o consagrou na revista O Cruzeiro entre 1945 e 1963. 

É possível acompanhar o trabalho de Millôr como diagramador dessas páginas duplas, totalmente idealizadas por ele: a ousadia no desenho e na composição, no uso de inusitadas colagens, na aventura das soluções de despojamento arrojado mostram um artista gráfico ágil, sem as travas preciosistas que seriam típicas de alguém que recebe espaço generoso e livre na revista de maior circulação do país. 

É possível acompanhar o trabalho de Millôr como diagramador dessas páginas duplas: a ousadia no desenho e na composição mostram um artista ágil

Trata-se de um capítulo especialmente saboroso, no qual podemos conferir a página original antes da inserção dos textos, feita nas redações dos jornais e revistas a partir de instruções a lápis. Por vezes a versão impressa também é exibida, possibilitando comparações. Vale dizer: os originais que aparecem com todo o seu frescor nesse capítulo e em outros, expondo o papel amarelado pelo tempo, os rabiscos a lápis, elementos colados, anotações e a borda amassada do papel, são um dos atrativos  do livro. 

A seção “Brasil” investe na crítica dos problemas econonômicos e sociais do país, expondo por exemplo desenhos sobre a ditadura militar (1964-85), momento que marcou a vida de Millôr e do Pasquim. A seleção procurou acertadamente dar ênfase a abordagens atemporais, sem desnortear o leitor com charges dedicadas a fatos muito específicos. “Condição humana” percorre desenhos sobre o cotidiano, a mulher, o casamento, comportamento, em comentários gráficos mais filosóficos e meditativos. 

Por fim, “À mão livre” apresenta desenhos de grande investigação gráfica, envoltos por temas livres e diversos, como bichos e árvores. Millôr mostra com maestria como uma diminuta nave sobre um planeta pode ter como fundo um céu rabiscado com crayon ou com pinceladas de tinta a guache, pintando com a liberdade de uma criança e nos fazendo lembrar Karel Appel e outros artistas. 

Transitamos do traço grosso sobre fundo colorido à linha fina, elegante e depurada. Em alguns trabalhos é o surpreendente excesso de detalhes da paisagem que aparece como comentário gráfico metalinguístico. Há também a paródia de estilo em Guernica um minuto antes. Guernica um minuto depois e no belíssimo tríptico Enterro de Mondrian.

Outro aspecto positivo são os textos. O crítico Agnaldo Farias procura refletir sobre a essência da obra gráfica desse “escritor sem estilo”, apontando suas principais características, como a veia filosófica pela via do humor e o uso de técnicas variadas, porém empregadas na contramão do virtuosismo. Paulo Roberto Pires explora fatos históricos e biográficos. Julia Kovensky discorre sobre o estúdio de Millôr, a cobertura icônica que ele ocupou por mais de quarenta anos em Ipanema, antes que fosse esvaziado e posto para alugar — uma vez que toda  a obra gráfica se mudou de lá para o acervo do IMS. Esse capítulo é acompanhado por belos registros fotográficos de Cristiano Mascaro que ajudam a reconstruir o cotidiano e a entender a produção de Millôr. 

No final do livro há uma cronologia pontuada por fotografias, capas de livros e alguns casos específicos. Millôr: obra gráfica é bem-sucedido na missão de apresentar as várias facetas desse desenhista inclassificável. E deixa no ar a expectativa por futuras exposições e publicações, pois o acervo é imenso. Como diz Julia no final de seu texto, “há muito para explorar”. 

Quem escreveu esse texto

Daniel Bueno

É professor da Ebac, artista gráfico e quadrinista. Ilustrou A janela de esquina de meu primo, de Hoffmann (CosacNaify).

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.