História,

Homem em tempos sombrios

Biografia mostra como a personalidade e o caráter de Toussaint Louverture fazem dele um protagonista que vai além da Revolução Haitiana

01dez2021

No livro Homens em tempos sombrios, Hannah Arendt escreve que a biografia, ao estilo inglês, é um dos gêneros mais admiráveis da historiografia. O contexto da citação da filósofa alemã é importante para este artigo de modo que merece ser apresentado por completo. Trata-se da abertura de um texto sobre Rosa Luxemburgo. Escreve Arendt: “a história [na biografia] não é aí tratada como inevitável pano de fundo do tempo de vida de uma pessoa famosa; é antes como se a luz incolor do tempo fosse atravessada e refratada pelo prisma de um grande caráter”. O trecho acima não poderia ser mais adequado à vida e à época do personagem escolhido pelo historiador Sudhir Hazareesingh, nascido nas Ilhas Maurício, no oceano Índico, que é fellow da British Academy e do Balliol College, Oxford. É dele o livro O maior revolucionário das Américas: a vida épica de Toussaint Louverture.   

Logo no começo do livro, o leitor descobre que o personagem principal dessa narrativa histórica não é um revolucionário de trajetória em linha reta. Toussaint Louverture (1743-1803), antes mesmo de ser o rebelde que se envolveu com o movimento de libertação dos escravos e com a Revolução Haitiana, teve uma jornada, de uma só vez, complexa e singular. A dificuldade começa já pelo nome: Toussaint não nasceu Louverture. De acordo com o que escreve seu biógrafo, na primeira fase de sua vida, ele foi Toussaint Bréda. Explica-se: os escravizados não eram dotados de direitos civis e políticos, de modo que seu sobrenome à época remetia à sua condição de propriedade de alguém. Para além disso, também a sua compleição física era motivo de chacota — graças à sua fragilidade, era chamado de Fatras-Bâton (“vara fina”, um jogo de palavras no dialeto crioulo, ensina o biógrafo).

Sim, ele foi escravizado ainda na infância, tendo vivido sob um regime de opressão e injustiça, mas as circunstâncias permitiram que ele se desenvolvesse de forma a ter uma percepção mais sensível do mundo que o cercava, escapando, portanto, do destino brutalizado para o qual havia sido forjado.

A pesquisa de Sudhir Hazareesingh mostra que, mesmo escravizado, Toussaint era altivo e ativo antes mesmo da era das transformações políticas

Nesse sentido, a pesquisa de Hazareesingh mostra que Toussaint Bréda era altivo e ativo antes mesmo da era das transformações políticas. Conforme revela o biógrafo, Toussaint “chegou à idade adulta com plena consciência de sua condição humana, e armado de um poderoso desejo de liberdade”. Não é pouca coisa, aprende-se no livro, haja vista que a expectativa de vida era baixa para os escravizados e num contexto em que o confronto era desfavorável para quem ousasse resistir. E, apesar dessa conjuntura hostil, Toussaint Bréda prevaleceu.

Como isso foi possível? Segundo o biógrafo, de fato, é correto assinalar que Toussaint não era um escravizado qualquer. De um lado, porque seu pai, Hyppolite, era de origem aladá, cuja reputação girava em torno da ideia de “raça guerreira”. Desse modo, se por um lado Hyppolite não sabia ler ou escrever, por outro compartilhou com o filho conhecimentos práticos de plantas medicinais. Depois que Hyppolite morreu, foi a vez de um aladá alforriado, Pierre-Baptiste, fazer as vezes de mentor para Toussaint, dando-lhe aulas de história, geografia e álgebra. Para além disso, é necessário mencionar que Toussaint acabou recrutado para ser uma espécie de braço direito — mais do que cocheiro — do colono branco francês Antoine-François Bayon de Libertat. E o biógrafo recupera, inclusive, uma declaração de Toussaint segundo a qual ele vivia com abundância no período pré-revolucionário.

Outro elemento decisivo para a formação do “grande caráter” — por vezes contraditório — de Toussaint foi a sua fé católica. O que pode soar como uma consequência negativa do colonialismo numa leitura contemporânea, na verdade, teve papel fundamental para que o revolucionário se insurgisse contra injustiça. O biógrafo assinala que Toussaint foi exposto à “religião desde a tenra idade”. E é necessário contexto para compreender como determinadas dinâmicas sociais escapam aos juízos mais absolutos. Conforme narra o livro: “Os proprietários das plantations queixavam-se de que os jesuítas enfraqueciam seu poder material e sua autoridade moral”. E mais: “Sua fé (de Toussaint) estava alicerçada nos valores cultivados pelos católicos mais velhos: harmonia, compaixão, sobriedade e, acima de tudo, fraternidade”.

Ascensão vertiginosa

Mais do que caracterizar os chamados anos de formação de Toussaint Louverture, Hazareesingh estabelece os patamares necessários para que se alcance a estatura que ele dá ao revolucionário. E a construção desse edifício também possibilita ao leitor descobrir qual era o prelúdio pré-revolucionário. De forma hábil, o autor concebe uma narrativa que dá espaço para a seguinte alternância: a trama histórica e política, às vezes, aparece em primeiro plano, sempre tendo a experiência de Toussaint como referência. Por esse motivo, a ordem cronológica não é preservada, o que representa uma vantagem porque as idas e vindas permitem um conhecimento mais abrangente dos eventos, tomando como eixo as suas consequências para explicar episódios mais complexos e dinâmicos.

Todo esse estratagema é necessário para conseguir capturar a figura fugidia de Toussaint Louverture. Embora outras biografias e relatos históricos tenham buscado oferecer um retrato mais acabado desse revolucionário, é certo que ele foi demasiadamente versátil, tendo experimentado diversas personas ao longo de sua vida. Isso significa que ele não foi o revolucionário que se imaginava? O livro de Hazareesingh não tem como objetivo demolir a imagem pública de Louverture; em vez disso, mostra que Toussaint foi capaz de exercer liderança política, conduzir campanhas militares; mediar conflitos junto à sua comunidade; e cuidar para não ser traído pelos adversários externos e internos. Sim, ele era o mesmo homem, mas sabia comportar-se como vários.

A força de Toussaint só fez crescer ao longo da história, a ponto de o biógrafo estabelecer conexões com líderes como Yasser Arafat e Nelson Mandela

Desse modo, o leitor aprende que, ao longo do processo revolucionário, a ascensão de Louverture foi vertiginosa. Hazareesingh escreve, a propósito da ocasião em que Louverture foi chamado de Espártaco: “Nada anda mais rápido do que o tempo revolucionário, mas nem mesmo Toussaint teria imaginado, ao abraçar a revolta dos escravizados em 1791, que cinco anos depois o governador de Saint-Domingue o compararia a um antecessor trácio tão ilustre (Espártaco)”. Esse status em vida não significa que a trajetória de Toussaint foi esvaziada de dificuldades. O revolucionário passou por muitas privações. Dormia pouco (cerca de quatro horas por dia), se alimentava de forma frugal e enfrentava toda sorte de adversidades no campo militar.

As dificuldades que enfrentava pareciam não ser capazes de esgotar a fibra moral que envolvia a persona de Toussaint Louverture. Para ficar em torno da mística que envolveu seu nome, houve ocasião, conta o biógrafo, que o revolucionário fez questão de demarcar seu nome de escravizado para reforçar sua identidade pessoal para com aqueles que precisavam de libertação. Em outro momento, o autor mostra como Toussaint não deixava que seus liderados esmorecessem. Fiel defensor da disciplina e do princípio republicano, ele inspirava os demais a partir de sua conduta virtuosa e de sua atenção aos objetivos de suas missões.

Assim, quando os britânicos representavam uma ameaça, Toussaint Louverture não economizava nos ardis para superar seus adversários; ao mesmo tempo, no entanto, ele se portava como um vencedor magnânimo. Buscava a boa-fé e se mostrava superior em relação aos seus inimigos. Como escreve Hazareesingh: “Se era capaz de encontrar uma maneira não-violenta de alcançar seus objetivos, ele a preferia. Sempre dava ultimatos a seus adversários antes de atacá-los, convidando-os a se entregar e prometendo clemência se depusessem as armas”.

Ser francês

Tamanha tenacidade não o protegeu da derrocada política, que, aliás, ele próprio já antevia ao declarar: “o homem poderoso de hoje é o impotente de amanhã”. E não é exagero afirmar que o seu ocaso tenha a ver com os limites inerentes de sua concepção política. Como defensor de um ideal republicano, ele jamais quis se desvencilhar de certa tradição francesa. O biógrafo recupera um fragmento poderoso e exemplar dessa convicção: “Nunca deixamos de ser franceses”, escreveu Toussaint em uma carta quando seus liderados tinham cantado “A marselhesa” enquanto debelavam um ataque francês.

Em que pese o fato de algumas de suas concessões serem percebidas já aos olhos da época como pontos de fragilidade (a exemplo de sua relação com a introdução do trabalho escravo por contrato com a colônia francesa ou, ainda, a relação que mantinha com os brancos), a força de Toussaint Louverture só fez crescer ao longo da história, a ponto de seu biógrafo estabelecer conexões possíveis com diversos líderes de movimentos de resistência na segunda metade do século 20, de Fidel Castro a Ho Chi Min, de Yasser Arafat a Nelson Mandela — deste último, aliás, Hazareesingh escreve a respeito do generoso espírito de reconciliação. Aqui, a relação que se estabelece se dá menos pela cor da pele e mais pela filiação insubordinada entre Louverture e o líder sul-africano. Separados no tempo e no espaço, cada qual à sua maneira soube entender o seu papel de referência como um legado para gerações futuras. Dito de outro modo, a destruição de regimes de opressão não pode se transformar no mote para outros tipos de perseguição.

Mais do que um revolucionário redescoberto ou um precursor do movimento anticolonial, a personalidade e o caráter de Toussaint Louverture fazem dele um protagonista que vai além da Revolução Haitiana. Conforme escreveu seu biógrafo: “Toussaint é muito mais do que uma relíquia gloriosa do passado”. Estrela que brilha à frente de sua época, é uma inspiração permanente para os tempos sombrios, de ontem e de hoje. 

Quem escreveu esse texto

Fábio Silvestre Cardoso

Jornalista, é autor de Capanema: a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas (Record).