História,

Fascismo à portuguesa

Historiador mostra como Salazar instituiu regime próprio e duradouro, equilibrando nacionalismo e liberalismo

03out2023

Em 1926, um golpe militar derrubou a primeira república portuguesa, sistema que vigorou dezesseis anos atribulados depois da queda da monarquia. O novo governo congregou as várias direitas que se formavam, mas não inaugurou uma nova fase republicana. Foi António de Oliveira Salazar, a partir de 1933, quem mais contribuiu para cristalizar um novo regime estável, durável, fundado no consenso das classes dominantes e mantido com permanente repressão aos opositores.

Salazar era um conservador nada afeito à mobilização popular. Quando o Movimento Nacional-Sindicalista (MNS) foi criado em 1932 para dar uma base de massas ao regime que se montava, o governante tratou de reprimir a organização de extrema direita. Chefes da arruaça fascista foram perseguidos e seus camisas-azuis, proibidos. Em julho de 1934 o mns foi proscrito. Seria, então, Salazar um fascista ou um simples ditador estranho à família de fascismos do entreguerras?

Sem o apoio de elites estabelecidas não haveria o regime fascista, mesmo no caso mais radical, o alemão

Fernando Rosas não tergiversa: o salazarismo é uma modalidade de fascismo, e o título do seu Salazar e os fascismos antecipa o cotejo entre o modelo luso e os demais fascismos europeus. O ensaio do historiador português é marcado pela sua experiência acadêmica: a introdução e os cinco capítulos passam por uma rápida revisão da historiografia. Para além disso, ele discute as relações entre história e memória, as condições em que o fascismo surgiu, elabora um esboço comparativo dos regimes, apresenta o Estado Novo português e finda com reflexões sobre as perspectivas atuais.

No livro, Rosas mobiliza constantemente o termo “populismo” para caracterizar o fascismo inicial. Como a palavra é ambígua na América Latina, várias frases tratam de definir que se trata da radicalização de discursos e práticas fascistas. A partir da página 56, o discurso populista é caracterizado por seu “plebeísmo”, por um “apoio à rua” e por ser ultranacionalista, revanchista e eventualmente racista. Sua função seria a de dar voz a setores sociais intermédios ou marginais apertados entre as ameaças da plutocracia e as da revolução social.

Casamento de conveniência

Para o autor, o fascismo percorre duas fases: movimento e regime. Na primeira, antes do poder, ele é “a expressão política do medo e da revolta dos grupos sociais intermédios” mobilizados pelo discurso populista anticomunista e antiliberal, mas não anticapitalista. Na segunda, em que se torna um regime, “é o compromisso do populismo com as oligarquias dominantes, no quadro de uma ordem nova moldada pela ideologia fascista”.

Na Portugal dos anos 30, o movimento fascista tinha antecedentes e se alimentou do nacionalismo autoritário, antissocialista e elitista que estava disponível no repertório ideológico. Meros intelectuais e pregadores não ofereciam uma alternativa para uma classe dominante assediada pela massificação da política. Àquele “núcleo duro” antissocialista faltava “o essencial: a base de massas e a violência irrestrita” que só o fascismo lhe daria. Para Rosas, no entanto, nenhum fascismo plebeu chegou ao poder sem a cumplicidade da direita conservadora. 

Regimes fascistas são resultantes da fascistização de baixo para cima e de cima para baixo. Sem o culto da violência sem peias e o discurso populista não haveria possibilidade de subversão da ordem. Mas sem o apoio de elites estabelecidas não haveria o regime — nem mesmo no caso mais radical, o alemão, em que os nazistas dispunham de forte ascendência sobre o Estado. Ali, o sindicalismo nazi foi descartado logo que o regime nazista se estabeleceu, e os patrões ficaram totalmente livres para impor a disciplina e a exploração da classe trabalhadora. De certa forma, todo fascismo trai sua base social tão logo transpõe “os portões do poder”, escreve Rosas.

No caso do salazarismo ocorreu o inverso do fanatismo nazista: o fascismo português foi a expressão da hegemonia conservadora no processo de fascistização. A definição nos lembra a de João Bernardo em Labirintos do fascismo — recentemente lançado no Brasil e que consta na bibliografia de Rosas. Bernardo estabeleceu um diagrama que tem um eixo interno radical (articulação do partido com as milícias e dessas com os sindicatos) e um exterior que é conservador com dois polos institucionais (Exército e Igreja). Na Alemanha predominou o eixo interno radical e, em Portugal, o externo conservador.

O historiador demonstra que o regime foi a “modalidade portuguesa” do movimento, ‘nacionalista, corporativo, antidemocrático, policial’

Embora descreva as diferentes situações históricas e geográficas em que o fascismo se desenvolveu e o entenda como fenômeno mutante e complexo, do ponto de vista analítico Rosas enfatiza a dicotomia movimento-regime e traz bons exemplos das permanências fascistas sob pactos variados. A despeito dos compromissos de Hitler com o Exército e os monopólios capitalistas e de Mussolini com a Igreja e a monarquia, nos derradeiros dias do bunker hitlerista ou da República de Salò, o espírito do fascismo mostrou que sempre esteve lá na sua expressão mais irracional e fanática.

Uma bem-vinda linha do tempo acrescentada à edição brasileira situa o leitor entre os fascismos europeus. Talvez possamos definir o salazarismo como o mais bem-sucedido desses, porque soube se adaptar. O historiador demonstra que o regime foi a “modalidade portuguesa” do movimento, “nacionalista, corporativo, antidemocrático, policial”. Com “mudanças cosméticas”, o salazarismo ensaiou um “recuo cuidadosamente controlado” após a queda de Mussolini e Hitler, sobrevivendo aos seus vizinhos por mais vinte anos.

No último capítulo, Rosas volta ao tema do continuum em que fascismo e liberalismo convivem. Num “processo geral de polarização e radicalização em curso, com o afundamento dos partidos centristas” — caso do Brasil, citado —, os movimentos de extrema direita “engravataram-se” e entraram em acordo com partidos da direita tradicional. O autor oferece uma síntese: a extrema direita assume o neoliberalismo, o livre mercado e a circulação de capitais e a direita conservadora aceita as reivindicações xenófobas e repressivas, sem destruir o Estado liberal parlamentar. O casamento de conveniência foi possível, afirma, porque tem sido capaz de conter os trabalhadores num regime de perda de direitos sem uma ditadura aberta. Mas, adverte: já existem sintomas de que isso está mudando.

Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros.

Quem escreveu esse texto

Lincoln Secco

Professor de história contemporânea na USP, é autor de História do PT (Ateliê Editorial).