Filosofia, História,

Pense no Haiti

Ensaio investiga a relação entre a escravidão nas Américas e a defesa da liberdade pelos pensadores europeus

23nov2018

O instigante ensaio de Susan Buck-Morss sustenta a tese de que uma das passagens mais conhecidas da filosofia de Hegel — a dialética do senhor e do escravo, no capítulo 4 da Fenomenologia do espírito (1807) — deve ser lida à luz dos eventos revolucionários ocorridos na colônia francesa de São Domingos, que, entre 1794 e 1804, adquiriu o estatuto de país livre e independente — o Haiti — graças a uma revolta de escravos pretos. 

Ocorrida na esteira da Revolução Francesa, a passagem trouxe um aprofundamento e uma radicalização do programa político jacobino, evento histórico de suma importância, embora pouco conhecido entre nós, reconstituído pelo livro de C. L. James, Os jacobinos negros (Boitempo, 2010). Vinculá-lo ao Idealismo Alemão é uma tese arrojada, que Buck-Morss sustenta com coerência e erudição, em um texto límpido e fluido (traduzido com esmero por Sebastião Nascimento).

O pano de fundo da análise de Buck-Morss é a poderosa ideia, delineada por Hegel, de que, na marcha da formação do espírito, há um momento em que “a verdade da consciência independente” desponta como “a consciência escrava”, ou, dito de outra maneira, a verdade do senhor torna-se “de fato a consciência inessencial e o agir inessencial dessa consciência” (cito a tradução de Paulo Meneses; Vozes, 1992). Experiência terrível em que a liberdade se realiza em seu outro: a escravidão. Buck-Morss identifica esse momento descrito por Hegel em termos universais a uma experiência determinada, fazendo assim com que a história irrompa no seio da mais rarefeita especulação hegeliana. É uma licença que comporta certa ousadia, mas que, graças à engenhosa análise da autora, justifica-se como interpretação legítima.

Manancial especulativo

Uma das muitas virtudes desse procedimento heterodoxo é mostrar que é possível ler um texto de filosofia, em suas travações conceituais, pelo crivo de eventos históricos contemporâneos à sua redação. Não se trata de um retorno ao velho reducionismo. Em nenhum momento Buck-Morss cede à tentação de explicar a Fenomenologia do espírito a partir do desdobramento da Revolução Francesa no Haiti. Sua intenção é outra: encontrar no texto o comentário alusivo desse evento, mostrando como, para Hegel, a história é o manancial da especulação filosófica. É na história que o conceito encontra, se não a sua origem última, a sua realização mais perfeita.

Desde as primeiras páginas, o leitor percebe que a autora compreende o clássico de Hegel como obra inscrita na tradição da filosofia política. Em rápidas e ágeis páginas que condensam o século de ouro holandês, a Revolução Inglesa, Hobbes, Locke, Rousseau e a Revolução Americana, Buck-Morss examina os interstícios das relações entre os conceitos de liberdade e escravidão na filosofia política europeia. Separa a ideia geral e abstrata de escravidão como jugo e opressão, aplicável indiferentemente às mais diversas situações, do fenômeno histórico-econômico da escravidão moderna, um dos pilares do sistema colonial mercantil instituído pelos estados europeus a partir do século 15. Desenha-se assim um descompasso flagrante entre a defesa da liberdade como um direito da natureza humana e manutenção do tráfico negreiro e da escravidão como uma necessidade mercantil.

Relegando os aprofundamentos conceituais a extensas notas de rodapé, a autora permite que a leitura do texto principal flua tão facilmente que se pode dar conta do ensaio de uma enfiada. Quando se vai às notas, porém, tem-se a impressão de que, por vezes, no afã de sustentar o argumento principal, Buck-Morss comete generalizações tolas e aborda pontos sutis de modo grosseiro. Um exemplo é uma nota à página 57, que alude a verbetes da Enciclopédia de Diderot e d’Alembert sobre a escravidão, textos que, se devidamente analisados (o que a autora não faz), introduziriam uma exceção de vulto no quadro algo desolador por ela pintado.

Buck-Morss examina os interstícios das relações entre os conceitos de liberdade e escravidão na filosofia política europeia 

Há outros deslizes do gênero, mas seria mesquinho diminuir o ensaio por causa deles. Pode-se mesmo afirmar que os acertos os compensam amplamente. Assim, na nota anterior à qual acabo de aludir, encontra-se o seguinte: “Se a revolução americana não pôde resolver o problema da escravidão, ela ao menos levou à percepção do problema”. Parece-me uma formulação muito feliz, que lança luz, sem rodeios, sobre uma contradição inerente ao ideário político formulado por Jefferson e os seus e posto em prática a partir de 1776 (com desdobramentos que vão desde a Guerra de Secessão no século 19 até os movimentos civis da década de 1960 e dos dias de hoje). No entender de Buck-Morss, essa percepção da escravidão como problema político moderno a partir da Revolução Americana é um fator essencial para que, poucos anos depois, viesse um evento histórico tão singular como a Revolução do Haiti.

Vê-se assim que a autora não recua diante da possibilidade de estabelecer uma compreensão conceitual de fenômenos históricos que se tornaram codinomes de ideologias. É um ponto que merece explicação. Em 1989, quando foram comemorados 200 anos da Revolução Francesa, consagrou-se pela primeira vez, no mainstream historiográfico, a tese algo inusitada, de forte sabor teleológico, de que os eventos de 1789 teriam levado inevitavelmente ao Terror jacobino, que, por sua vez, seria a prefiguração dos “totalitarismos” do século 20. 

Passados trinta anos, essa tese se tornou tão disseminada que adquiriu as tinturas de um lugar-comum, ao qual se acrescenta este outro: o contraponto à revolução radical ocorrida na França seria a revolução norte-americana de 1776, que legou aos EUA (e, por extensão, ao mundo) uma constituição sólida e inabalável. Buck-Morss não perde tempo com generalizações dessa índole, e prefere chamar a atenção para o potencial emancipador da Revolução Francesa, realizado mais efetivamente, ainda que de maneira efêmera, no Haiti.

Em uma época em que a filosofia se restringia a interpretar o mundo, sem querer modificá-lo, coube aos alemães saudar a Revolução como um evento de gênero singular, promovido por um “povo filosófico” (na expressão de Kant). Mas é importante dizer que o entusiasmo de Kant, longe de ser irrestrito, é condicionado pela censura ao terror e pela observação (decisiva) de que, em todo caso, uma revolução como essa, que destitui uma ordem legalmente estabelecida, não é nenhum exemplo de conduta política, por mais que tenha instituído uma constituição mais condizente com a índole moral do gênero humano. Diagnóstico refletido, que se situa em direta oposição ao histrionismo de um Burke, por exemplo. Mas é claro que, assim, Kant vê a Revolução como um fenômeno centrado em Paris, que é, a seus olhos, como que o lar espiritual de Voltaire, dos enciclopedistas, de Rousseau, progenitores da vindoura república.

O ensaio de Buck-Morss propõe uma mudança de foco sobre a obra de Hegel e sobre a recepção da Revolução Francesa na Alemanha, ensinando-nos, com isso, a reler todo um capítulo da história da filosofia. A perspectiva que ela adota, tomando o fim da escravidão no Haiti como o fenômeno central é tão pertinente, que lhe permite, inclusive, reinterpretar as célebres (e constrangedoras) passagens da Filosofia da História nas quais Hegel relega as nações africanas ao limbo da História Universal.

 A temporalidade histórica, recuperada na chave do conceito, elucida assim a armação estrutural do pensamento de um filósofo que, não sem razões, foi considerado por muitos como um autor impenetrável. Ao mesmo tempo, o foco é deslocado de Paris para uma pequena ilha colonial, e a filosofia política europeia encontra sua verdade no continente americano.

Coube aos alemães saudar a Revolução Francesa como um evento de gênero singular, promovido por um ‘povo filosófico’

Uma das teses mais surpreendentes de Hegel e o Haiti é enunciada em uma nota de rodapé à página 83, onde é dito que a leitura de Adam Smith, em 1803, foi um “ponto de virada” na reflexão hegeliana sobre a escravidão como fenômeno histórico prenhe de implicações conceituais mais amplas. Sugere-se, com isso, que a economia política, com seu desdém pela escravidão, essa instituição obsoleta do ponto de vista da produção da riqueza, permitiu a Hegel desprender-se da filosofia política e elevar-se a um ponto de vista superior, no qual a verdade da suposta dependência do escravo em relação ao senhor é revertida, e a dominação afigura-se como escravidão. Diga-se de passagem, Darwin irá se referir, anos depois, em termos muito similares, ao “instinto escravizador” de certas espécies de formigas, que se tornam tão dependentes de seus serviçais que suas funções mais vitais dependem da atividade deles. Não são necessárias grandes elucubrações para ver a pertinência de considerações como essas para a psicologia social dos países marcados profundamente pela escravidão — o Brasil como nenhum outro. 

Last but not least, cabe dizer que, no esquema de interpretação proposto por Buck-Morss, a Revolução Francesa desponta, a propósito da escravidão, em imbricação com a economia política escocesa, geralmente saudada ou denunciada por suas supostas tendências conservadoras. É o suficiente para pormos de lado como anacrônicas as linhagens do pensamento liberal que excluem dessa ampla e rica família ideológica todo e qualquer elemento de radicalismo.  

A ótima edição brasileira de Hegel e o Haiti conta com um interessante prefácio de Vladimir Safatle e traz numerosas ilustrações, inclusive uma reprodução em fac-símile do lindo poema de William Wordsworth dedicado ao líder da revolução haitiana, Toussaint L’Ouverture. Se há um reparo a ser feito, é quanto à ausência de uma bibliografia das fontes citadas por Buck-Morss em rodapé. 

Quem escreveu esse texto

Pedro Paulo Pimenta

É autor de A trama da natureza: organismo e finalidade na época da Ilustração (Editora Unesp).