Editora 451,

O som do poema

Noemi Jaffe narra em romance a história de Nadejda Mandelstam, que com sua memória salvou do esquecimento a poesia do marido, Óssip

01dez2020

A história do século 20 tem episódios que parecem antecipar e superar as mais delirantes distopias literárias. Antes de o norte-americano Ray Bradbury publicar, em 1953, Fahrenheit 451, sobre uma sociedade em que os livros são incinerados, na qual a sobrevivência da cultura letrada se deve a dissidentes que resolvem decorar suas obras favoritas, uma devotada Nadejda Mandelstam (1899-1980) usava a memória para salvar os poemas de um dos principais escritores russos do século 20: seu marido, Óssip Mandelstam (1891-1938), um dentre os milhões de vítimas do terror stalinista. A impressionante trajetória de Nadejda foi resgatada, na literatura brasileira, por Noemi Jaffe, no romance O que ela sussurra.

Nascido em Varsóvia, de família judaica, em uma Polônia então pertencente ao império russo, Mandelstam foi uma das vozes mais pessoais da Era de Prata, como é conhecido o período único de efervescência criativa da Rússia da primeira metade do século 20. Teatro (Meyerhold), fotografia (Ródtchenko), cinema (Eisenstein, Vértov, Pudóvkin), música (Scriabin, Stravinsky, Prokófiev, Chostakóvitch), artes plásticas (Kandinsky, Malévitch, Chagall): parecia não haver uma área em que os russos não tivessem algo de inovador a mostrar para o planeta.

Nas letras, depois de décadas de predomínio da prosa, era o renascimento da poesia: inicialmente, sob o domínio do simbolismo e, a partir da década de 1910, das correntes que lutavam para superá-lo, como o cubo-futurismo (de Maiakóvski) e o acmeísmo, de Mandelstam e sua amiga Anna Akhmátova (não por acaso, personagem destacada do romance).

Com origem no grego “acmé” (cume), o acmeísmo era algo como uma tentativa de despojar o simbolismo de seus excessos metafóricos. Estrela do movimento, Mandelstam teve a trajetória ascendente cortada ao declamar para um pequeno círculo de amigos, em 1933, o epigrama (jamais posto no papel) “Vivemos sem sentir o chão nos pés”, no qual Stálin é descrito como “montanhês do Kremlin”, de “dedos grossos como vermes” e “bigode de barata em eterno rir”.

Seguiu-se a prisão, em 1934; o exílio interno, em Vorônej; uma segunda detenção, o envio para os campos de trabalho forçado na Sibéria e a morte no gulag, por tifo, em 1938. Ficcionalizada por Varlam Chalámov em “Xerez”, um dos mais impactantes de seus Contos de Kolimá, a morte de Mandelstam teve os detalhes plenamente revelados por Vitali Chentalinsky em La Parole ressuscitée: dans les archives littéraires du KGB, (A palavra ressuscitada: nos arquivos literários da KGB), em que o autor esmiúça o dossiê da polícia secreta soviética a respeito do escritor.

Em 1956, no “degelo” de Khruschov, Mandelstam foi reabilitado postumamente das acusações que levaram à sua primeira prisão. A absolvição completa, relativa ao processo que o mandou para os campos siberianos, só aconteceria durante a perestroika de Gorbatchov, em 1987. Não por acaso, a frase mais célebre a ele atribuída sobre a Rússia é: “Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso”. 

Para Isaiah Berlin, “sua poesia, embora seu escopo fosse deliberadamente confinado, possuía uma pureza e perfeição de forma nunca atingidas novamente na Rússia”. Joseph Brodsky não era menos entusiasmado: “Ele se dedicou por trinta anos à poesia russa, e o que produziu há de durar enquanto a língua russa existir”. Como, no Brasil, a principal lacuna na recepção da literatura russa é a poesia, ainda não há nenhum volume de versos de Mandelstam editado por aqui.

A Editora 34 publicou um excelente volume de prosa, Rumor do tempo, e a histórica antologia Poesia russa moderna, de Augusto e Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman, publicada pela Perspectiva, traz alguns de seus poemas. Neste ano, a Revista Rosa trouxe uma série de excelentes versões de seu livro de estreia, Pedra, por Jorge Sallum. Os versos que Jaffe cita em seu livro foram traduzidos por Letícia Mei.

Eu, um baú

Se hoje podemos aquilatar a produção de Mandelstam, isso se deve sobretudo ao empenho de Nadejda. Desconfiando do papel em um país que prendia não apenas escritores, mas também seus manuscritos — como aconteceu a Um coração de cachorro, de Bulgákov, e Vida e destino, de Grossman —, ela memorizou os versos do marido. “Fui, durante grande parte da vida, companheira seguidora de poemas que, se não eram meus, passaram a ser por usufruto; eu, um baú”, são as palavras que Noemi Jaffe põe em sua boca. “Os poemas é que decidiram vir a ele, assim como a frase no ônibus e eu não tenho direito de deixá-los sumir, porque assim como o corpo se adapta à dureza, também o som do poema quer ficar, porque o som é sua origem, foi a música que me fez nascer e escolheu Óssip para que ele os dissesse. Não tenho escolha.”

Nadejda (cujo nome, em russo, significa “esperança”) redigiu dois volumes autobiográficos, Esperança contra esperança (1970) e Esperança abandonada (1974), que, nas palavras de Brodsky, “não são tanto memórias e guias para as vidas de dois grandes poetas, por mais que tenha sido soberba a maneira como se desincumbiram dessas funções; seus livros elucidaram a consciência do país. Ou pelo menos da parte dele que conseguiu pôr as mãos num exemplar”.

Com um material tão rico para manipular, Jaffe escreve um fluxo de consciência em primeira pessoa, combinando factual e ficcional, coloquial e poético. Seu foco é, sobretudo, a experiência da prisão e do exílo, a paranoia de uma sociedade sob a sombra da delação, a memória como resistência, as armadilhas do tempo, a resiliência da esperança. Narra episódios como o célebre telefonema de Stálin a Pasternak (em que o futuro Nobel de literatura teria falhado em defender o amigo), as infidelidades do poeta, a exigência deste de que a mulher abandonasse a pintura. Detalhes humanos de um sacrifício sobre-humano, para enfrentar um regime desumano.

Ao fim da leitura, fica a vontade de penetrar com intensidade na poesia de Mandelstam, e de conhecer ainda mais a fundo os detalhes dessa existência tão tortuosa. Quem sabe, depois deste romance, alguma editora brasileira se anime e resolva publicar não apenas mais da poesia de Óssip, como também as memórias de duas guerras mundiais. 

Quem escreveu esse texto

Irineu Franco Perpetuo

Escreveu História concisa da música clássica brasileira (Alameda).