Divulgação Científica,

O passado não é mais como era antigamente

Ensaio inspirado, entre muitas fontes, em pensadores indígenas evita viés colonialista para contar a história da nossa espécie

19out2022

O despertar de tudo: uma nova história da humanidade é uma obra ambiciosa. Em setecentas páginas, incluindo abundantes notas e referências bibliográficas, o livro de David Graeber e David Wengrow pretende trazer uma nova perspectiva da história profunda da nossa espécie, Homo sapiens, desde a Idade do Gelo, há mais de 12 mil anos, até o passado recente. O despertar se inscreve numa linhagem que inclui livros com o mesmo escopo, tais como Armas, germes e aço, de Jared Diamond, Os anjos bons da nossa natureza, de Steven Pinker, e Sapiens: uma breve história da humanidade, de Yuval Noah Harari. Em comum, Diamond, Pinker e Harari utilizam muitas informações arqueológicas, embora não sejam arqueólogos ou antropólogos: Diamond se formou como zoólogo; Pinker, como psicólogo/linguista e Harari, como especialista em história da Idade Média. 


O despertar de tudo: uma nova história da humanidade, de David Graeber e David Wengrow 

Graeber e Wengrow, por outro lado, são do ramo; Graeber, que morreu inesperadamente de uma crise de pancreatite aos 59 anos em Veneza,  em 2020, era um antropólogo professor da London School of Economics, com experiência de campo em Madagascar e uma produção que ia além de sua área geográfica de pesquisa. Entre seus livros mais conhecidos há Dívida: os primeiros 5.000 anos, publicado no Brasil em 2016 pela Três Estrelas, e Bullshit Jobs, ainda inédito entre nós. 

Além de ser um renomado antropólogo, ele era também um ativista político que teve papel importante no movimento Occupy Wall Street e que, provavelmente por causa de sua militância, não conseguiu renovar seu contrato de professor no departamento de antropologia da Universidade Yale, onde ensinava antes de se mudar para o Reino Unido. Wengrow, que também tem relevante produção bibliográfica, incluindo o livro What Is Civilization, é um arqueólogo que trabalha no Curdistão iraquiano e ensina arqueologia comparativa no Instituto de Arqueologia da University College London — talvez a maior instituição de ensino e pesquisa em arqueologia no mundo ocidental.

Mais que uma distinção corporativista com relação àqueles outros autores, a formação e a prática de pesquisa em antropologia e arqueologia permitem a Graeber e Wengrow um tratamento menos dogmático e mais sofisticado da imensa quantidade de informações que têm sido produzidas pela arqueologia nos últimos anos. O aporte das ciências naturais, com a genômica, a química de isótopos e o estudo de vestígios microscópicos de plantas, por exemplo, tem provocado uma verdadeira revolução sobre nossa capacidade de conhecer o passado, principalmente os períodos anteriores à adoção da escrita. Dessa revolução tem emergido uma visão mais complexa e surpreendente, que é sintetizada de maneira brilhante pelos autores. 

Arqueologia e colonialismo

A arqueologia tem em sua história uma ligação umbilical com o colonialismo e não é à toa que riquíssimas coleções estejam guardadas em museus da Europa e dos Estados Unidos. Parte dessa herança, da qual a disciplina se ressente até hoje, se reflete em uma perspectiva linear do passado, que alinha história a progresso, como se nossa espécie tivesse passado pelos mesmos estágios evolutivos de maneiras independentes em diferentes lugares do planeta. As denominações que tais estágios vêm recebendo no último século e meio têm variado, mas na essência elas seguem um esquema que se inicia com sociedades supostamente mais simples (“bandos”, “caçadores-coletores”) e terminaria com sociedades estatais, ou complexas, que, não por coincidência, têm atributos semelhantes aos das sociedades ocidentais contemporâneas, tais como agricultura intensiva, centralização política, divisão em classes sociais, presença de exércitos, urbanismo etc. 

Os exemplos arqueológicos incluem um estudo de caso sobre o cultivo de plantas na Amazônia

Por essa razão, é ainda comum na pauta da arqueologia a proposição de problemas de pesquisa com tópicos como o surgimento do Estado ou a emergência da agricultura, processos que teriam ocorrido de maneira universal sob os mesmos princípios. Tais ideias foram sintetizadas de maneira brilhante pelo arqueólogo australiano Vere Gordon Childe em meados do século 20, por meio da proposição de conceitos importantes como os de revolução neolítica ou revolução urbana. Por outro lado, as sociedades que supostamente não conseguiram realizar tais transições, como os povos indígenas do Brasil ou da Oceania, teriam como que perdido o trem da história e estacionado em estágios evolutivos menos desenvolvidos. Seriam, portanto, condenadas ao fracasso e passíveis de subjugação.

Estudos de caso

Pesquisas recentes na arqueologia, no entanto, têm mostrado que o passado foi muito mais complicado e interessante, com evidências que desafiam tais perspectivas lineares. Há inúmeros exemplos de sociedades que tinham conhecimento técnico para domesticar plantas, e assim o fizeram, mas que não quiseram se transformar em agricultoras; de metrópoles antigas, como Teotihuacan, no vale do México, que tinham pirâmides, mas aparentemente não eram governadas por uma elite centralizadora; de, no sentido oposto, sociedades não agrícolas, como na costa noroeste dos EUA e no litoral canadense do Pacífico, que eram hierarquizadas e tinham elites perdulárias bem assentadas. Os exemplos arqueológicos mostrados no livro são abundantes e incluem estudos de caso no Oriente Médio, no Egito, na Polinésia, na América do Norte, na Mesoamerica, na Eurásia e na América do Sul, inclusive com uma discussão atualizada sobre a história antiga do cultivo e da domesticação de plantas na Amazônia. Tal erudição resulta, a meu ver, do incrível conhecimento de Wengrow, que ensina arqueologia comparativa.

Os inúmeros estudos de caso são amarrados pelas concepções teóricas de Graeber e Wengrow, bem como por suas perspectivas políticas, e pela discussão de autores como Gregory Bateson, Pierre Clastres, Alfred Crosby, Claude Lévi-Strauss, Marcel Mauss, Marshall Sahlins (que foi orientador de Graeber na Universidade de Chicago) e James Scott. A grande inspiração teórica, no entanto, vem da releitura de pensadores indígenas que, já no século 17, elaboravam aqui nas Américas uma crítica poderosa aos modos de vida dos colonizadores europeus. Dentre esses, há Kondiaronk, indígena da Confederação Wendat dos povos iroqueses da região oriental dos Grandes Lagos, situada entre o Canadá e os EUA. 


Nhambiquara tecendo um bracelete, em foto dos anos 30 [Claude Lévi Strauss/Divulgação]

No início do século 18, o barão de Lahontan, militar francês que havia servido nessa região, publicou três livros relatando suas memórias nas Américas, com destaque para o terceiro volume, que contém quatro relatos de conversas entre o autor e Kondiaronk. Tais diálogos apresentam uma crítica indígena aos modos de vida e postura dos colonizadores europeus, que incluíam traços de intolerância religiosa, o acúmulo desigual de riqueza, a naturalização da competição, a sujeição cega à figura de um soberano e a ganância. 

Tal crítica continua bastante atual: é impressionante como a leitura dos trechos das falas atribuídas a Kondiaronk por Lahontan ecoa ideias propostas hoje por pensadores indígenas como Ailton Krenak e Davi Kopenawa, quando este último, por exemplo, se refere ao que chama de “doença da mercadoria”, que aflige o mundo não indígena. Os livros de Lahontan tiveram grande impacto na época e, de acordo com Graeber e Wengrow, foi a partir de sua leitura e da crítica neles contida que pensadores europeus como Anne Robert Jacques Turgot formularam a perspectiva que o pensamento evolucionista social consagrou até o presente, baseada na classificação da humanidade em estágios de desenvolvimento ligados a atividades produtivas como caça, agricultura ou comércio. 

O livro é baseado em pesquisas rigorosas e documentação farta, mas é claramente político

Enquanto autores como Diamond, Pinker e Harari parecem aceitar tal tipo de classificação e naturalizá-la, Graeber e Wengrow demonstram, através das discussões conceituais e dos inúmeros estudos de caso, que ela não tem nada de universal quando examinada à luz das novas evidências disponíveis. O livro é baseado em pesquisas rigorosas e documentação farta, mas também é claramente político. Nesse sentido, sua mensagem mais importante é a de que o futuro estará sempre aberto e de que é um erro crasso entender o passado como se tudo o que aconteceu na história ocorreu para que chegássemos aonde estamos aqui e agora. 

O despertar de tudo é grande, recheado de dados e muito bem escrito. O texto é escorreito e a leitura é fluida. A clareza jamais é sacrificada nas inevitáveis discussões sobre conceitos e técnicas analíticas em arqueologia e antropologia. A tradução está muito boa e faz justiça à clareza do texto. Não tenho dúvidas de que é uma obra que influenciará por décadas as discussões e pesquisas em arqueologia.

Quem escreveu esse texto

Eduardo Neves

Professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, é autor de Arqueologia da Amazônia (Zahar).