Direito,

Recurso contra a república de bananas

Escritor processado por Eduardo Cunha por causa de romance resenha livro sobre direito e arte

31maio2019

Direito, arte e liberdade passou despercebido quando foi lançado, há um ano. É um trabalho decisivo para o contexto contemporâneo e, por isso, sob pena de continuarmos patinando no desconhecimento das relações entre arte e direito, merece leitura e análise urgentes.

O livro se divide em três partes desiguais. Há um conjunto de intervenções apaixonadas de artistas e personagens do meio cultural que serve mais como oportunidade de desabafo do que como possibilidade de reflexão. Se por um lado é importante para mostrar o estado de espírito de alguns nomes fundamentais da arte brasileira, por outro acaba colaborando para a equivocada ideia de que artistas não conseguem se aprofundar em um debate intelectual ou, mais ainda, que existe diferença entre uma coisa e outra. Nesse grupo, sobressai o texto de Antonio Prata, como de hábito muito inspirado.

A segunda parte reúne entrevistas. Jô Soares é inteligente e oferece um contexto revelador dos anseios e crenças de certa geração: a de quem sofreu com o golpe de 1964, viveu a liberdade das últimas décadas e agora assiste a um certo déjà-vu melancólico, incompetente e cafona. Sem citar nenhum caso diretamente, o comediante analisa com tranquilidade a questão do humor ofensivo e faz a clara distinção entre piada e agressão. De resto, condena com todas as letras qualquer tipo de censura e chega a fazer uma afirmação triste, para dizer o mínimo: “[…] a tendência do mundo é exatamente de ser conservador. Na minha opinião a sociedade tem sempre uma tendência puritana. Sempre”.  

As outras entrevistas, formadas por um conjunto de perguntas iguais respondidas por líderes de diferentes religiões, são inquietantes. Praticamente todas, do islamismo àquelas de matriz africana, do judaísmo aos evangélicos, receberam oportunidade de se manifestar. Com variações pontuais, todos se declaram a favor da ampla liberdade de criação artística, da convivência saudável entre os diferentes credos e sem ambiguidade defendem a laicidade do Estado. Não há motivo para duvidar da sinceridade das respostas, o que me obriga a acreditar que há um grave fosso entre o que dizem as lideranças religiosas e o que de fato seus intermediários levam aos fiéis. A verdade é que as bases da maior parte dos grupos religiosos foram peça decisiva no motor de ataque à arte que causou enorme estrago em 2017 — como o cancelamento da exposição Queer Museum em Porto Alegre — e continuam se comportando de forma oposta ao que seus líderes pensam. É mais grave do que isso: parece que nem sequer os ouvem. 

A dissonância está causando enorme ruído para a democracia brasileira. O exemplo principal é o da peça O evangelho segundo Jesus, rainha do céu, que recebeu inúmeras tentativas de censura — algumas de início bem-sucedidas, embora depois derrubadas em segunda instância. Tanto o texto da dramaturga Jo Clifford quanto a interpretação da atriz Renata Carvalho não são apenas respeitosos com as religiões: são peças francamente cristãs. Mesmo assim, grupos que se autodenominam religiosos investiram juridicamente contra a montagem. Além de se portarem como censores, pecaram contra o cristianismo, que prega a solidariedade aos grupos vulneráveis e não o contrário. Vocês estão causando essa catástrofe agora mas, quando chegar o Juízo Final, vão levar um enorme susto, seus pecadores ignorantes. Será muito bem feito, amém.   

Não se pode falar em ‘abuso de liberdade de criação artística’ como se faz com a liberdade de expressão

Por fim, o livro traz um conjunto de artigos, redigidos por vários advogados e uma desembargadora, de fato brilhantes não apenas pela profundidade com que cercam todas as questões como também pela clareza da apresentação e pelo vocabulário acessível. Temas complexos como “Arte e criança” ou “Arte e humor” e outros em que reina o desconhecimento, como “Arte e direitos da personalidade”, são tratados tanto do ponto de vista formal quanto do prático. Vale reproduzir aquele que deve ser o trecho fundamental do livro: “É importante evidenciar que a liberdade de expressão ocupa posição privilegiada em relação aos demais direitos fundamentais”. Quando há um choque, portanto, é esse direito que deve prevalecer. 

Aqui, faço uma observação para lidar com uma questão que, possivelmente por ser abstrata demais, o livro contempla apenas tangencialmente: a liberdade de criação artística é um direito ainda maior que o da liberdade de expressão. A arte muitas vezes não expressa coisa alguma, apenas coloca na sociedade um dispositivo que será posteriormente carregado de sentidos. Por isso, o tratamento jurídico que deve receber é ainda mais especial: não pode existir, por exemplo, a figura do “abuso da liberdade de criação artística”, como há o correlato para o direito de livre expressão. Não faz o menor sentido.

Código de Defesa do Consumidor

Todo gestor cultural, curador e funcionário de instituições ligadas à arte precisa ler esse livro com cuidado. O ideal é fichá-lo e discuti-lo com os colegas de trabalho em seminários e grupos de estudo. Direito, arte e liberdade precisa ficar o tempo inteiro à disposição também dos frequentadores, como o Código de Defesa do Consumidor, sempre exposto no comércio. Fica claro pelos textos que o ordenamento jurídico brasileiro está equipado para garantir a ampla liberdade de criação e pesar todo tipo de controvérsia sem, em hipótese alguma, recair em censura. A questão é que justamente alguns julgadores parecem ignorar os próprios códigos, jurisprudência e doutrinas aos quais devem seguir para, às vezes, aliar-se a radicalismos sem base jurídica. A situação de início é a mesma que causa o desequilíbrio entre o que afirmam os líderes religiosos e o que fazem seus intermediários. A diferença é que, ao menos por enquanto, as instâncias recursais continuam garantindo, mesmo às vezes nos pregando sustos, a liberdade de criação. No dia em que um recurso que busque garantir esse direito perder, acabará a democracia. 

Depois dos graves problemas que protagonizamos em 2017, o ataque às artes diminuiu, graças à mobilização dos artistas e às contínuas vitórias judiciais. Neste momento, as instituições de ensino se tornaram o alvo. A esperança é que, talvez em dimensão ampliada, a união entre engajamento e ação jurídica de novo tenha resultado. Do contrário, o Brasil voltará a ser a república de bananas que acreditamos estar superada.  

Quem escreveu esse texto

Ricardo Lísias

Escreveu Diário da cadeia (Record) sob o pseudônimo de Eduardo Cunha.