Desigualdades,

No topo da desigualdade

Marcelo Medeiros apresenta números chocantes da distribuição de renda no Brasil e afirma que a educação é insuficiente para mudar o cenário

01dez2023

Marcelo Medeiros faz parte de uma geração que trouxe o debate sobre desigualdade de renda ao centro da discussão brasileira. Ele e Pedro H. G. Ferreira de Souza — seu orientando de doutorado, colega no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e editor desta seção da Quatro Cinco Um — já assustavam com mensurações do nível e da estabilidade da desigualdade nacional quando Thomas Piketty se tornou um fenômeno de mídia.

Aqui você pode pensar: eu ando nas ruas, sei que o Brasil é desigual, não preciso ver os números ou ler um livro sobre isso. Bem, os números apresentados por Medeiros no recém-lançado Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade são ainda piores do que se pensa. Basta dizer que metade da população brasileira levaria pelo menos dois anos para receber o mesmo valor que o menos afluente participante do grupo 1% mais rico ganha em um mês. O Brasil é tão desigual que o Índice de Gini, medida mais comum de desigualdade de renda, só cairia 10% se a renda da metade mais pobre dobrasse. E esses não são os números mais chocantes apresentados pelo autor.


Em Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualde, Marcelo Medeiros diagnostica o formato da distribuição de renda brasileira

Logo no começo, Medeiros diz que a obra não tem um fio condutor, e que isso é proposital: tentativas de forçar todas as dimensões da desigualdade brasileira para dentro da mesma historinha induziriam o leitor ao erro. A desigualdade é causada por inúmeros mecanismos, e não devemos buscar uma bala de prata que resolva o problema de uma vez. O autor propõe soluções com cautela, sempre fazendo a ressalva de que políticas que deixem de funcionar devem ser abandonadas.

Se não tem um fio condutor, por outro lado, o livro certamente tem um ponto de partida: o diagnóstico de Medeiros sobre o formato da distribuição de renda brasileira. O Brasil é uma massa de pessoas mais ou menos pobres, que vai ficando mais rica lentamente, conforme passamos dos mais pobres para o meio da distribuição de renda, subindo até chegar perto dos 80% mais pobres. Daí em diante, à medida que alcançamos grupos menores, mais perto do topo, a desigualdade começa a crescer muito mais rapidamente: os 5% mais ricos têm renda muito maior do que os cidadãos logo no começo dos 10%. Os 1% são muito mais abonados do que as pessoas no limite dos 5%, e as do 0,1% seguem a mesma tendência. Isto é, grande parte da desigualdade brasileira está localizada no topo da distribuição de renda.

Os dados de 2001 a 2013 mostram que a maioria da população brasileira, em algum momento, foi pobre

Isso tem algumas consequências. Por exemplo, focalizar políticas sociais nos mais pobres é uma ótima ideia, como atestado pelo sucesso de programas como o Bolsa Família. Entretanto, existe o risco de um excesso de focalização deixar de fora de programas sociais indivíduos que estão só um pouco acima da linha de pobreza e que constantemente se movem para cima e para baixo dela. Os dados de 2001 a 2013 mostram que a maioria da população brasileira, em algum momento, foi pobre.

Além disso, olhar para o topo da distribuição de renda exige pensar em mecanismos de redistribuição diferentes dos utilizados entre os pobres e a classe média, por exemplo. Até chegar aos ricos, parte importante da desigualdade é produzida por qualificações educacionais e pode ser influenciada por políticas de valorização do salário mínimo e transferência de renda. Conforme se atinge o topo da distribuição, educação explica menos e riqueza patrimonial explica mais.

Isso quer dizer, em primeiro lugar, que um dos instrumentos para reduzir a desigualdade brasileira precisa ser a taxação do patrimônio. Isso já acontece com cerca de metade da riqueza, como terra e imóveis, que são alvo de impostos específicos. Contudo, ainda há muito o que fazer para taxar outras formas de riqueza. Para Medeiros, o risco de fuga de capitais pode ser minimizado se o nível dessa taxação não for excessivo e se ela for bem integrada com outros modelos de tributo.

Tese controversa

A provável tese mais controversa do livro é que não se pode pedir demais da educação no combate à desigualdade. A educação é fundamental para o desenvolvimento tecnológico do país, para a realização dos estudantes enquanto cidadãos e o combate de preconceitos (que também geram desigualdades), e só isso já é mais do que suficiente para defender sua expansão.

Os dados de Medeiros demonstram, entretanto, que a expansão precisaria ser muito intensa e sustentada por muito tempo para reduzir significativamente a desigualdade de renda: precisaria ir além da universalização do ensino médio e até mesmo do superior. Seria necessário ampliar consideravelmente a quantidade de vagas nos cursos de elite (medicina, engenharia etc.), que oferecem prêmios de renda maiores. E mesmo essa expansão demoraria muitas décadas até mexer nos números.

O autor sugere cautela na interpretação desses resultados. No geral, é muito difícil discutir com os dados que ele apresenta. Mas as projeções supõem que a relação entre educação e renda seria mais ou menos a que existiu até agora. Talvez uma população mais educada gerasse, no entanto, outra estrutura produtiva, em que os efeitos da educação sobre a desigualdade fossem diferentes. Medeiros lembra ainda que há cenários possíveis (mas não prováveis), em que a educação se expande e a desigualdade sobe: por exemplo, caso o aumento da oferta de professores deprima seus salários em comparação aos dos que atuam em profissões mais lucrativas.

Curiosamente, o livro sobre desigualdade não tem nenhum gráfico. Isso pode decepcionar o especialista, mas certamente ajuda o leigo que está se aproximando do assunto pela primeira vez. Além disso, os exemplos que contribuem para explicar os números são muito bem escolhidos. Medeiros tem um repertório de boas histórias para ilustrar seu raciocínio, inclusive da trajetória dos estudos sobre desigualdade.

Senti falta da comparação entre a desigualdade no Brasil com a do resto do mundo. Sabemos que somos um dos países mais desiguais, mas fiquei curioso em saber se, por exemplo, a desproporcionalidade é muito menos concentrada no topo em outros países. É um tema árido, mas Medeiros já se mostrou capaz de explicar assuntos ainda mais penosos com boas histórias.

Quem escreveu esse texto

Celso Rocha de Barros

Sociólogo, é analista do Banco Central, colunista da Folha de S.Paulo e autor de PT, uma história (Companhia das Letras, 2022).