Desigualdades,

A volta do socialismo utópico

Livro oferece panorama acessível do pensamento atual
de Piketty, embora conteúdo continue grandiloquente

01fev2024

É impossível superestimar a influência de Thomas Piketty sobre os estudos recentes acerca da desigualdade. Até o fim dos anos 90, a abordagem predominante se concentrava nos diferenciais salariais associados ao capital humano dos trabalhadores, interpretando-se as mudanças na desigualdade como resultado da interação entre oferta e demanda por trabalho qualificado — a chamada “corrida entre educação e tecnologia”.


Uma breve história da igualdade oferece um panorama acessível do pensamento do intelectual público Thomas Piketty

Esse debate não morreu, mas perdeu espaço desde que Piketty e seus colaboradores recuperaram o uso de dados tributários e recolocaram os ricos na conversa, propondo explicações históricas e institucionais para a concentração de renda e propriedade no topo da distribuição. O quiproquó transbordou da academia há cerca de uma década, com a publicação do ótimo (e, convenhamos, pretensioso) O capital no século 21, que virou sucesso editorial global com sua mistura de história, economia, referências literárias e previsões apocalípticas.

De lá para cá, Piketty abraçou o papel de intelectual público como um bom francês, inclusive ecoando Sartre, Beauvoir e Camus na recusa à condecoração da Legião de Honra. Sem esmorecer na esfera acadêmica, o economista tornou-se ainda mais ativo no Partido Socialista francês, participou da adaptação do seu best-seller para o cinema e, em 2019, voltou às livrarias com Capital e ideologia, um calhamaço ainda mais longo e ambicioso do que o anterior. No livro, Piketty abandonou sua tentativa anterior de formular “leis fundamentais do capitalismo” para mergulhar numa análise histórica que reduzia a desigualdade inteiramente à política e à ideologia — “Marx invertido”, como escreveu Paul Krugman em sua resenha no New York Times. Crítica e público não se convenceram, e a recepção ao livro foi tépida. Na prática, sua maior repercussão foi obrigar todos os resenhistas a fazer troça com a verborragia do autor.

Não à toa, é o próprio Piketty quem apresenta seu último livro, Uma breve história da igualdade, como uma espécie de resumo atualizado das suas obras anteriores, condensando em cerca de trezentas páginas o que chama de uma nova perspectiva histórica baseada na marcha rumo à igualdade. Hipérbole à parte — e Alexis de Tocqueville certamente teria algo a dizer sobre a originalidade do argumento —, o novo livro oferece um panorama acessível do pensamento atual do autor, embora o conteúdo continue mais grandiloquente do que nunca. Como o intelectual público Piketty é hoje muito mais “tudólogo” do que economista, e seu ativismo político é explícito, é muito provável que as reações ao livro simplesmente espelhem as preferências ideológicas prévias dos leitores.

A grande redistribuição

No Uma breve história, a perspectiva histórica é frouxamente amarrada nos primeiros seis capítulos, que recontam a ascensão da modernidade a partir da evolução de diversos tipos de desigualdade. Piketty reitera o progresso generalizado na redução das desigualdades desde o século 18, passa pela desconcentração da propriedade que deu origem à “classe média patrimonial”, discorre sobre colonialismo e escravidão, examina o declínio da aristocracia e, finalmente, chega à “grande redistribuição”, isto é, a redução significativa das desigualdades materiais em boa parte do mundo entre 1914 e 1980.

Os melhores trechos tratam dos temas mais próximos à pesquisa do próprio autor, principalmente no que diz respeito à evolução da desigualdade de patrimônio e renda nos países desenvolvidos, como nos capítulos 1, 2 e 6. A invenção do estado de bem-estar social e o potencial redistributivo da tributação progressiva são pontos altos, e a transição sueca de uma sociedade incrivelmente desigual para o expoente do igualitarismo é contada de forma sucinta, mas merece ser conhecida.

Em vez do que se observa em trabalhos anteriores, Piketty também mostra muito mais sensibilidade à importância de lutas e conflitos sociais como motores de mudanças, chamando a atenção para a não linearidade dos processos e para momentos críticos provocados por grandes crises políticas. Ao mesmo tempo, é persuasivo ao argumentar que nada disso basta sem a construção sólida de instituições inclusivas, cujo funcionamento e resultados nem sempre são previsíveis.

Piketty é hoje muito mais ‘tudólogo’ do que economista e seu ativismo político é explícito

No fundo, quase todos os capítulos apresentam alguma informação ou análise instigante. O problema é que o livro não se detém por tempo suficiente nas partes mais legais, mudando selvagemente de assunto a cada poucas páginas. O efeito é cansativo, e alguns capítulos dão a sensação de serem narrados pelo falecido Ernani Pires Ferreira, lendário locutor de turfe carioca que entrou para o Guinness nos anos 80 por conseguir falar mais de trezentas palavras por minuto.

O espaço alocado a cada tema também não segue critérios muito intuitivos. Por exemplo, a guerra civil e a abolição da escravidão nos Estados Unidos merecem menos espaço do que uma discussão surreal sobre a conveniência ou não de incluir perguntas sobre etnia, cor e/ou raça em censos demográficos, o que, de quebra, trai o francocentrismo do autor. Por sinal, os argumentos sobre ações afirmativas ignoram completamente a bem-sucedida experiência brasileira e, com efeito, parecem estar quinze ou vinte anos atrasados em relação ao nosso debate público.

Em outros trechos, Piketty faz leituras altamente seletivas da bibliografia, apresentando as conclusões que mais o agradam como se fossem consensuais, o que definitivamente não é o caso. A discussão sobre a Revolução Industrial nem sequer menciona a palavra “produtividade”, e a “grande divergência” entre a Europa e o resto do mundo é quase inteiramente reduzida à opressão e à dominação. É uma opção conveniente para a tese do livro, mas ao apresentar a discussão de forma tão unilateral o autor acaba alienando até leitores simpáticos. Uma breve história da igualdade fica mais perto da pregação aos convertidos do que da persuasão dos indecisos.

Da política à ficção

A tendência persiste nos últimos capítulos do livro, quando o francês sai do passado para especular sobre o futuro. Depois de defender a existência de uma propensão secular para a igualdade e de celebrar as transformações promovidas pelo estado de bem-estar social e pela tributação progressiva, o autor se coloca a pergunta central: o que fazer para voltarmos a progredir?

O livro é pródigo em propostas que, se implementadas, fariam os países nórdicos parecerem o cúmulo do neoliberalismo. Afinal, Piketty não tem, felizmente, nenhum interesse em apenas ressuscitar a Europa do pós-guerra. O que ele oferece é um longo cardápio de reformas institucionais para revigorar a marcha rumo à igualdade nos levando a um socialismo com muitos adjetivos — democráti-
co, federativo, participativo, autogestionário, ecológico, multicultural etc.

No plano doméstico, o autor diagnostica a concentração de propriedade como grande problema e sugere contornos gerais para um conjunto de políticas difíceis de implementar até em videogame. Para ele, seria vital combinar programas generosos de renda mínima com programas de herança mínima — ele sugere que cada cidadão europeu poderia receber 120 mil euros ao completar 25 anos — e políticas de emprego garantido em atividades de interesse público com salários modestos mas decentes.

O autor é relutante em nomear quem levantaria a bandeira desse socialismo democrático

Esses programas não substituiriam as políticas sociais já existentes, pelo contrário: seriam acrescentados a uma concepção maximalista de benefícios e serviços públicos, inclusive com legislação para limitar o poder decisório de acionistas e garantir a representação paritária dos empregados na direção das grandes empresas. O financiamento se daria por um sistema unificado e progressivo de tributação de renda, patrimônio, emissões de carbono e contribuições sociais, que, nos cálculos do autor, corresponderia a 50% da renda nacional. O objetivo das propostas é reduzir gradualmente o setor privado da economia, que em última instância seria limitado a poucas atividades, como moradia e pequenas empresas.

Evidentemente, trata-se de um programa inviável no arranjo atual da economia global, e Piketty deixa clara sua oposição à livre circulação de bens e capitais. Consequentemente, ele parte para revolucionar também o plano internacional, propondo mecanismos de governança global que nos levem a um federalismo democrático com objetivos sociais em nível planetário.

Se você desconfia de quem tem solução para tudo, Uma breve história da igualdade não é para você. De fato, uma olhadela no mundo atual desperta a suspeita de que o autor saiu da política para entrar na ficção — e, se é esse o caso, por que não pularmos logo para o mundo pós-escassez de Star Trek, que pelo menos tem alienígenas e naves espaciais? Ao mesmo tempo, o esforço de Piketty é justamente para ir na contramão desse sarcasmo fácil e acomodado. É bonito ver alguém de primeiro escalão dando a cara a tapa com propostas à esquerda que vão além tanto do apego ao estado de bem-estar social perdido quanto do incrementalismo tecnocrático. O saudoso Anthony Atkinson já havia dado passo semelhante e até mais bem-sucedido em Desigualdade: O que pode ser feito?, mas é muito bom que seu discípulo mantenha esse foco.

Palavras mágicas

O que incomoda em Uma breve história da igualdade é que as prescrições políticas são tecnocráticas demais para serem inspiradoras e idealistas demais para influenciarem políticas públicas. Mais uma vez, Piketty descarta com facilidade excessiva as muitas objeções possíveis e ignora a longa lista de fracassos do alto modernismo, como se ele só precisasse enunciar com clareza seu programa para dissolver a falsa consciência dos opositores. Os muitos adjetivos do seu socialismo são brandidos como se tivessem poderes mágicos, dando a impressão de que basta dizer que alguma coisa é democrática para que isso se torne realidade. Evidentemente, não se trata de ingenuidade do autor, que inclusive vaticina contra isso em outros trechos do livro, mas é uma opção infeliz — nesse sentido, o velho Marx foi muito mais esperto em deixar os contornos das futuras sociedades comunistas tão vagos quanto previsões astrológicas.

No caso de Piketty, o cerne do problema está numa lacuna comum em muitos livros reformistas, mas surpreendente num título que repetidamente paga pedágio à centralidade dos conflitos sociais: Uma breve história da igualdade é inaceitavelmente relutante em nomear quem seriam os grupos ou forças sociais que levantariam a bandeira desse socialismo democrático. O livro se abstém de apontar sua própria base social, talvez porque ela não seja capaz nem de encher o Stade de France. Como diriam os anglófonos, não é possível ter o bolo e comê-lo: para um autor que reconhece a complexidade das clivagens sociais, com seu emaranhado de interesses, Piketty acaba por tratar o eleitorado de maneira amorfa, passível de ser persuadido só por belas palavras.

Infelizmente, nada indica que isso seja possível. É difícil crer que haja uma demanda pelo socialismo reprimida e prestes a explodir. Como diz o economista Branko Milanovic, a despeito de todo o discurso sobre a crise do capitalismo, a lógica de mercado penetra cada vez mais áreas da vida pública e privada. Sem a disciplina imposta pela necessidade de levar em conta os interesses de alguma base social, não é surpreendente que as propostas do livro se descolem da realidade para adquirir caráter firmemente fantasioso. Isso fica ainda mais evidente no plano internacional, em que o socialismo utópico de Piketty parece tão provável quanto a letra de “Imagine”.

No fundo, é uma pena. O projeto político do economista francês é mais uma manifestação do projeto sisífico do iluminismo de tornar a vida social transparente para si mesma, submetida à deliberação coletiva da humanidade. É uma ambição nobre e difícil de abandonar, mesmo para cínicos como certos resenhistas, que adorariam ver as propostas de Piketty testadas em algum lugar — de preferência em algum país longe do nosso, porque o papel aceita tudo e nós já fomos cobaias de coisas demais.

Quem escreveu esse texto

Pedro H. G. Ferreira de Souza

É pesquisador do Ipea e autor de Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), pela editora Hucitec.