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Como dois e dois são cinco

Entre a filosofia e o ensaio pessoal, Eduardo Jardim discute o desafio ao pensamento e à poesia quando o deserto cresce ao redor

15nov2018

Muito civilizadamente se discute se a palavra “sertão” de fato tem a mesma origem latina de deserto — aquilo que está ou foi abandonado. O “grande sertão” seria um “desertão”. É o lugar do vazio, onde as forças impessoais da natureza se impõem. Também é aí que se experimenta a maior incerteza, do ponto de vista civil, tão apegado às previsibilidades de uma vida mais ou menos ordenada. Etimologias à parte, é uma sorte que a necessidade seja a mãe da invenção. Desertar não é uma opção disponível para quem já se acha num deserto. Como diz a canção, “tudo certo, como dois e dois são cinco”.

Nada disso é diretamente abordado em Tudo em volta está deserto, o ensaio de Eduardo Jardim sobre a literatura e a música no tempo da ditadura militar (1964-85). Mas está tudo nele pressuposto. O tema se divide em três partes, quase soltas umas das outras. A primeira trata do romance Quarup (1967), de Antonio Callado. A segunda é sobre um show de Gal Costa produzido por Waly Salomão em 1971. E a última cuida da poesia de Ana Cristina Cesar, na virada dos anos 1970 para a década de 1980. 

O fascínio do livro se relaciona à relevância pública da matéria que o filósofo aborda

Três momentos da cultura brasileira “em tempos sombrios”, como diz o autor, ecoando a expressão marcada pela obra de Hannah Arendt. Não há outro fio condutor além dessa sombra histórica e do ângulo autobiográfico sutil, quase disfarçado, que situa o ensaísta — filósofo e professor universitário formado nessa época, que recebeu em cheio o impacto das obras por ele comentadas décadas depois. 

A escrita é límpida: uma conversa sem maiores pretensões, mas impregnada de expectativas e experiências que fascinam o leitor. Especialmente o de hoje, para quem o diabo se mostra de novo “no meio do redemunho”, quando é necessário ser “antes de tudo um forte”. Essas ressonâncias imprevistas inscrevem o livro — mesmo que à revelia do autor — numa vasta biblioteca sobre as condições da cultura no Brasil. 

Essa coleção não é nada desértica, embora continue a refletir uma interminável expedição e seus tropeços, desde a carta de Caminha. Entre Euclides e Rosas, Mários, Buarques e Freyres, Nabucos e Chauis, agora se nota o acréscimo discreto de um Jardim. (Por uma ironia civilizacional, a metáfora botânica da “aclimatação” se torna incontornável, sendo ela própria uma das mais resistentes “raízes” do Brasil). Mas nessas prateleiras ele sempre estará mal-enxertado, porque não pressupõe nenhuma totalidade prévia estável, nacional ou regional, ou sequer identitária, nem fala em nome de ninguém, senão de si mesmo, sobre o que foi por ele experimentado no tempo, junto com sua geração.

Ocorre que várias outras gerações ficam implicadas, porque o ensaísta se aproxima — com que delicadeza! — de objetos que marcaram fundo a educação sentimental de muita gente que veio depois. O romance, as canções, as poesias — são obras bem conhecidas e ainda admiradas ou até cultuadas. Jardim as aborda de leve, aos poucos, redesenhando os contextos originais, mas com a vivacidade de uma testemunha ocular e existencial. O leitor é levado pela mão, sem notar que seu guia, além de ensaísta, é um filósofo. 

De repente, o que parecia tão casual se avoluma em reflexões agudas, cheias de consequências. “O livro termina com um apelo à ação”, escreve o autor, sobre Quarup, “que é mais uma reação às agressões sofridas e ao fracasso de todos os projetos”. E, na segunda parte, ao descrever um instante de catarse: “O desfecho de Gal a todo vapor exige uma espécie de contenção emocional. Há o grito, mas ele tem o efeito de desarmar o movimento explosivo do frevo que o antecedera”. Ou, na última, ao enfrentar a difícil relação entre documental e ficcional na poesia moderna: “Um poema só pode ser visto como tal ao se assumir como invenção”.

Oportunidade

Por um lado, o fascínio de Tudo em volta está deserto se relaciona a essa relevância pública da matéria que o filósofo aborda de peito aberto, dirigindo-se ao leitor em geral, sem proteção de cátedra. Por outro, também importa aqui a exata oportunidade dessa abordagem do passado como intervenção no presente, quando há tanta avidez pelo debate. Pode ser que a combinação de relevância e oportunidade dê ao livro, junto do público, uma envergadura mais extensa que a pretendida pelo autor. Ainda mais considerando a impregnação citada acima: expectativas e experiências, enlaçadas como um casal em crise, indispostas uma com a outra, mas dificilmente separáveis. Antonio C., Gal C. e Ana C. oferecem os temas para essa conversa que não acaba, mas o assunto de fato, no subsolo do deserto, é a ruptura entre o que foi projetado e o que se pôde alcançar, o luto pela frustração coletiva e o apelo à imaginação criadora em busca de interlocução e novos horizontes.

Esse assunto em profundidade veio à tona na apresentação que Jardim leu no lançamento do livro, em Ouro Preto, em novembro passado. Ele esclarecia que sua intenção original era escrever sobre o início da década de 1970: “Naquele momento se exauriram muitos projetos amadurecidos na década anterior, criando uma espécie de vácuo de expectativas”. 

A ideia do Deserto, então, surgiu diante desse vazio. A relevância pública está aí, na necessidade de reconhecer o desmantelamento dos projetos que não vingaram. A oportunidade fica bem clara na reflexão que vem depois: “A falência das expectativas nem sempre tem apenas o sentido de uma perda das referências, mas pode ser como um desafio para o pensamento e também para a poesia”.

É simbólico que o evento tenha ocorrido na velha capital de Minas Gerais, a Vila Rica dos Inconfidentes, a Ouro Preto das agitações liberais do século 19. Mais ainda, no casarão da rua Direita que pertenceu a Rodrigo Melo Franco de Andrade, cujo nome ficou associado à preservação do patrimônio histórico — um casarão reconstruído por Lúcio Costa, um dos maiores representantes do alto modernismo na arquitetura brasileira. 

Como evitar que esses ícones encarnem de novo, para fazer parte do debate atual sobre o que vem pela frente? E o que são eles, realmente, no Brasil de hoje? O passado? Em que sentido? No seu tempo, eles se esforçaram contra as mais perenes múmias… 

Essas perguntas vão brotando sem cessar, à medida que avançamos na leitura. Pelo título, o livro se inicia com a canção de Caetano Veloso. Mas termina com a citação dos versos de Belchior a quem ama o passado e não vê “que o novo sempre vem”. É verdade, ele vem. Daí a lembrança de outro refrão, mais popular: “O que será o amanhã?” . Precisaremos de um acordo para evitar que o “novo” venha apenas demolir os casarões que considera “velhos”, como sempre tem feito, no Brasil, desde um passado imemorial, enquanto conserva em outros espaços o éthos patriarcal que um dia morou neles. Já sabemos que, a curto prazo, o “novo” não será nenhum apresentador de TV, como havia previsto o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com vetusta autoridade. Há quem pense que o novo já veio: para muitos, falhou; para outros tantos, foi repelido pelo velho. Tudo em volta está deserto se distancia dessa discussão. Não se trata de uma “meditação sobre ruínas”.

A necessidade de abertura a um novo que não venha entre aspas é o resultado, na reflexão de Jardim, da rememoração dos tempos sombrios, em três pontos luminosos. A parte sobre Callado aparece como uma espécie de prelúdio, na revisão de uma obra literária politicamente “engajada”, no sentido à esquerda dado ao termo por Sartre. Mas não é tanto essa inclinação o que torna Quarup tão atraente para Jardim: por um lado, o romance “incorpora o propósito de contestação do regime vigente e reivindica a implantação de uma nova ordem”; mas, por outro, “põe em dúvida a possibilidade de realização dessas aspirações”. Callado, como seu personagem revolucionário numa expedição ao centro geográfico do Brasil, no Xingu, constata o bloqueio que se levantava aos ideais que julgava progressistas. 

Ao escolher essa via como princípio, Jardim faz também a sua “anábase” — a sua jornada ao interior — por dentro do mergulho nos momentos originários de uma geração sacrificada pelo AI-5 (1968). No interior se acham os sertões que é necessário conhecer, junto com tudo o que foi desertado, abandonado. 

Por exemplo, um dos maiores romances brasileiros da segunda metade do século passado, que completou cinquenta anos em 2017, sem celebrações. Assim como seu autor, um dos maiores romancistas etc., cujo centenário também passou em brancas nuvens no ano passado. Ou a primeira gravação de um samba, “Pelo telefone”, de Donga, centenária no mesmo ano, mas sem memória. Tudo lá, carcomido no imenso formigueiro de Quarup, o gigantesco sugadouro dos esforços brasílicos.

A todo vapor

A jornada prossegue até o ano de 1971, no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, com o espetáculo Gal a todo vapor — registrado no LP Fa-Tal, trazendo canções inesquecíveis como “Vapor barato” e “Luz do sol” (de Jards Macalé e Waly Salomão), “Antonico” (de Ismael Silva) e “Sua estupidez” (de Roberto e Erasmo). O leitor vira a página aliviado como quem, depois de pisar no formigueiro do Xingu, mete num lago fresco o pé descalço. É a detalhada e emocionada rememoração de um show antológico. É também um modo de elevar um evento de música popular à estatura de obra-prima que se pode atribuir a um romance de Callado ou a um livro de poemas de Ana Cristina.

Antonio C., Gal C. e Ana C. oferecem os temas para essa discussão que não acaba

Mas é ainda mais do que isso. Além da refinada análise do roteiro e de algumas das dezessete canções do show, Jardim também se serve dele para desenvolver a reflexão que atravessa o projeto do livro inteiro. Primeiro, mostra como se dava ali já um distanciamento do próprio Tropicalismo, que implicava uma pauta mais articulada e englobante, num movimento tributário da Antropofagia oswaldiana pelo modo de encarar a nacionalidade e suas relações com uma cultura global. O ensaísta afirma que, para os organizadores do show, o projeto antes liderado por Caetano e Gil “já tinha encerrado seu ciclo”.

Segundo, Gal a todo vapor também permite a Jardim examinar o tema da catarse experimentada pelo público jovem que ia várias vezes ao teatro rever o show. O filósofo trata então da noção (que remonta à Antiguidade) de um poder terapêutico atribuído às artes, por sua força de purgação do sofrimento e reconciliação dos afetos. “Tanto nos momentos mais tristes quanto nos mais exaltados, o público era carregado por uma enorme onda de congraçamento” — relembra. 

Ana C.

A questão é importante também na etapa seguinte, que fecha o livro, sobre a poesia de Ana Cristina Cesar. O exame feito por Jardim da trajetória e da obra dessa poeta nada fácil é um primor. O ensaísta a vê no contexto histórico da repressão posterior a 1968, com o fracasso das oposições mais radicais e o declínio da militância política tradicional. “A década de 1970 foi de desmobilização política, de agitação festiva, e de muito desespero”, relembra. Ao mesmo tempo que surgiam novas formas de contestação, no campo comportamental, criou-se o ambiente favorecedor de um “recuo para a subjetividade”. 

A poesia extremamente pessoal de Ana C. estaria de certo modo acolhida aí. Jardim aponta e problematiza com maestria os aspectos mais desafiadores de sua obra, sobretudo os ligados à tensão entre o documental, o confessional, o autobiográfico, por um lado, e o ficcional, o técnico e o conceitual, por outro. A marca inconfundível dela foi seu modo de interseccionar essas instâncias, embaralhando-as até misturá-las numa coisa só, irredutível e, assim, poética.

Relacionando com cuidado e precisão as várias frentes de atuação de Ana C. — muito além da poesia, na universidade, na pesquisa, na crítica literária, na teoria e até na correspondência privada — ele chega a apresentar de fato uma leitura persuasiva. Para Jardim, Ana Cristina é uma poeta preocupada com a afirmação do caráter ficcional da poesia, que, no entanto, não elimina seu teor vivencial; é uma autora reflexiva, que pôs em tudo o que escreveu o timbre de uma visada crítica, muito pensada; sua maestria se liga a um recurso à espontaneidade, ao tom da fala e do cotidiano, que é uma coloquialidade “construída com muito exercício” por uma “leitora estudiosa” da poesia moderna; não se trata de uma poesia confessional, restrita à intimidade da autora ou a circunstâncias biográficas. 

Principalmente, Jardim explora com brevidade e minúcia, diante de um punhado de exemplos certeiros, o “apelo de interlocução” que para ele está contido nos seus textos — e que ela mesma via como um traço constitutivamente feminino da literatura (mas não identitário, por independer do gênero da autoria).

“Extemporâneo” — é a palavra que ocorre a Jardim para descrever o perfil de Ana C. em seu tempo sombrio: “Sua personalidade e sua poesia não se encaixavam em nenhuma orientação definida, e sua relação com seu tempo pode ter sido de alguém que estava à margem da margem”. Tal extemporaneidade não deixa de ser uma intensa militância, com uma “recusa a se deixar levar pelos modismos de seu tempo” como “a forma mais rigorosa de contestá-lo”. Bastaria isso, hoje, como observação à margem da margem de tanta piedosa superstição do contemporâneo filosofal e poetolítico.

A consideração extemporânea de Jardim é apenas um dos muitos ecos, em seu livro, da obra de Nietzsche, a quem essa palavra ficou ligada (pelo adjetivo unzeitgemäß, às vezes traduzido também como “inatual” ou “intempestivo”). Outra é a citação famosa de Assim falou Zaratustra: “O deserto cresce”. O que fazer dessa verdade incontestável? 

Na primeira parte desse mesmo livro, o alemão trata das “três metamorfoses” (do espírito em camelo, deste em leão, e deste em criança). “Todas essas coisas mais pesadas”, ensina Zaratustra, “o espírito resistente toma sobre si: semelhante ao camelo que ruma carregado para o deserto, assim ruma ele para o seu deserto”. Jardim nos convida a essa resistência. Quando a experiência desfaz as expectativas, é hora de rumar para o nosso Deserto. Onde poderemos virar leão. E, depois, criança. 

Quem escreveu esse texto

Sérgio Alcides

Poeta e crítico literário, é autor de Armadilha para Ana Cristina e outros textos sobre poesia contemporânea (Verso Brasil).