Ciências Sociais,

No vale das máquinas

Jornalista da revista ‘The New Yorker’ conta suas memórias sobre o período em que trabalhou no setor de tecnologia

26ago2022

Certa vez me candidatei a uma vaga de emprego em uma start-up de soluções de pagamento (ou de meios de pagamento? Ou de maquininha de cartão de crédito? Tudo junto? Nunca cheguei a saber). Tinha 27 anos e alguma experiência como advogado e fui entrevistado por um rapaz mais jovem e muito mais bem preparado do que eu. Por algum motivo, ele viu na minha falta de clareza quanto à carreira um traço de sinceridade.

Após a conversa inicial, passei por mais duas etapas. Primeiro, com o bambambã da área, um sujeito de cabelo grisalho, magro, camisa na estica, que já tinha feito muito dinheiro no mercado financeiro e que era abordado nos corredores como se fosse o gargalo que destravaria todas as operações da empresa com frases como “pra dentro deles”, “pisa fundo” e “vai nessa”. Depois, com as moças do rh, que me disseram que era melhor desistir da vaga se eu estivesse pensando em um salário decente ou tivesse afazeres que atrapalhassem o mínimo das doze horas diárias de dedicação exclusiva à empresa. No fim dessa última entrevista, cruzei com um conhecido que trabalhava lá. Ele tinha acabado de acompanhar dois caras até o elevador. Depois me segurou pelo braço e sussurrou ao meu ouvido: “Não conta nada pra ninguém, mas a gente quer quebrar o Bilhete Único”.

O processo todo me causou uma série de sensações. Todas elas influenciadas, certamente, por meu sentimento de inadequação ao clima de euforia, reverência, informalidade e certa megalomania que permeava o ambiente. Revisitei essas impressões ao ler Vale da estranheza, livro da jornalista Anna Wiener recentemente lançado no Brasil. A autora escreve sobre tecnologia na revista The New Yorker e conta suas memórias sobre o período em que trabalhou nesse setor.

Antes de ser recrutada, a autora desempenhava funções administrativas em uma editora de Nova York. Sem perspectivas de crescimento profissional, consegue uma vaga em uma start-up que desenvolve um aplicativo que funciona como uma espécie de biblioteca digital. Durante uma apresentação de trabalho feita por seu chefe, ela tem uma epifania ao ler o nome Hemmingway (sim, com dois emes) em um slide: aquela ferramenta não tinha como público-alvo pessoas que realmente gostavam de ler, mas sim pessoas que queriam passar por leitoras.

É recorrente a sua sensação de ser útil apenas quando assume o papel de mãe de seus colegas

A jornalista migra para o Vale do Silício, onde passa um par de anos trabalhando primeiro em uma empresa de análise de dados, depois em uma famosa plataforma de código aberto que também é conhecida como a rede social dos programadores — a propósito, a autora não nomeia nenhuma das empresas para as quais trabalhou, nem empresa alguma de tecnologia, mesmo as mais óbvias como a rede social que todo mundo ama odiar, o buscador de internet que se tornou maior do que a própria internet e a plataforma de aluguel de hospedagens.

Percepção afiada

Wiener escreve com clareza. Não relata suas impressões pela metade. Ela disseca o ambiente que a cerca, seus colegas e a si mesma com um domínio muito evidente da linguagem, objetiva em transmitir sua subjetividade. E daí decorrem percepções de gênero, claras na medida em que ela sempre é uma das primeiras mulheres a ser empregada nas empresas em que trabalha. É recorrente sua sensação de ser útil apenas quando assume o papel de mãe de seus colegas, homens jovens pelos quais sente alguma ternura. São vigorosas as imagens que a jornalista descreve sobre uma San Francisco hostil, cara e anódina, desigual ao mesclar ambientes assépticos de bares especializados em kombucha com barracas de sem-teto brotando das ruínas da contracultura dos anos 60.

Quanto à vida pessoal, “passava o tempo de forma inevitável e esquecível”. Ou seja, ficava dias a fio rolando a barra do mouse ou a tela do celular, vendo tutoriais no YouTube ou pensatas de “intelectuais de fóruns de internet”. Sentia saudade de Nova York e de seus amigos que se refugiavam na nostalgia e nos aparelhos analógicos como uma “reação instintiva à percepção de que a materialidade estava desaparecendo do mundo”. Ficava agoniada com o fato de se sentir uma adolescente endinheirada, em cativeiro voluntário em escritórios de pufes berrantes e mesas de pingue-pongue, vivendo sem planos de longo prazo e gastando seu salário com entretenimento estéril e um aluguel exorbitante.

Mais do que isso, Wiener percebe que passou todos esses anos anulando toda aquela porção da sua personalidade que não dá a mínima para produtividade ou objetivos mensuráveis. Aquela porção que reconhecemos quando nos interessamos pelo fragmento de uma história ouvida de butuca no ônibus, por algum personagem que nos chama a atenção em um momento de ócio ou quando atingimos uma camada de pensamento inacessível ao abre e fecha frenético de guias do navegador.

“Outro dia fui a uma livraria e comecei a rir. Todos aqueles livros lotando as estantes, bíblias, monastérios. Todas as guerras e tudo o mais. Isso já era. Ninguém liga mais para o passado. Está todo mundo só pensando nas migalhas saborosas”, diz Roman Roy, um dos playboys vigaristas da série Sucession, em algum episódio da primeira temporada.

Ler Wiener é mergulhar nas engrenagens desse mundo de galinhas ciscando migalhas saborosas, esquecendo-se de tudo o que veem, irritadiças, se deprimindo sem se dar conta, tendo que se conformar com o fato de que somos virtuais — a resistência analógica é, mais do que fetiche, uma renúncia à própria subsistência. É ver outras galinhas, estas mais gordas, bilionárias, quebrando a cabeça atrás da próxima e-wallet mais revolucionária ou da melhor forma de direcionar propaganda para as galinhas mirradinhas.

Quem escreveu esse texto

Antonio Mammi

Jornalista, é editor do Nexo Jornal.