Ciências Sociais,

Feminismo para quem?

Duas autoras expõem a hierarquia branca dentro do movimento feminista e as consequentes exclusões de mulheres fora desse padrão

01jan2022 | Edição #53

O feminismo, por si só, é um assunto que causa desconforto. Exigir equidade entre homens e mulheres requer incomodar quem ocupa as cadeiras de poder. Ainda mais se o dedo estiver apontado diretamente para a branquitude e seus privilégios. Pois, apesar dos inúmeros avanços alcançados desde a concepção do movimento, persiste nele a reprodução de padrões que — a princípio — deveriam ser quebrados. Mas um fenômeno dentro da própria causa mantém excluídas comunidades já marginalizadas, sem compromisso para que esse ciclo seja interrompido. Trata-se do feminismo branco. 

“As políticas de assimilação são amplas e espinhosas. E, para muitos grupos privados de direitos nos Estados Unidos, seguir as regras e os parâmetros do opressor foi por vezes uma forma de sobrevivência básica”, escreve Koa Beck em Feminismo branco: das sufragistas às influenciadoras e quem elas deixam para trás, lançado pela Harper Collins.

O ensaio de Beck e outro lançamento recente no mercado brasileiro, Contra o feminismo branco, de Rafia Zakaria (Intrínseca), são dois livros que assumem a áspera e necessária tarefa de esmiuçar essa problemática. Começando por nomeá-la, sem receios. As autoras partem de suas próprias vivências enquanto mulheres cis não brancas para levantar considerações e críticas duras sobre o cerne dessa vertente do movimento. Cada uma a seu modo explica que o termo se refere a um conjunto de comportamentos, e não exclusivamente a uma identidade racial. Mas, claro, esse tipo de feminismo é praticado principalmente por mulheres brancas.

Beck escreve sob a perspectiva de ser uma jornalista estadunidense, birracial, queer, com passagens como editora por importantes revistas femininas de moda e comportamento, como Vogue e Marie Claire, e pelo site Jezebel. Já a advogada, feminista e ativista pelos direitos humanos Rafia Zakaria aborda em Contra o feminismo branco suas percepções como mulher paquistanesa, notificando conflitos de natureza xenofóbica. 

As leituras são complementares, já que ambas trazem olhares distintos sobre uma mesma questão, num exemplo claro de que, para entender as complexidades do feminismo, é preciso que diversas vozes falem e sejam ouvidas. Quanto mais amplo o diálogo, mais pessoas alcançadas. Também há pontos nos quais os dois livros convergem e chegam a levantar questionamentos parelhos. São  geralmente questões envolvendo patriarcado, capitalismo, individualismo, interseccionalidade e pandemia. Mas o principal questionamento se concentra em analisar um arquétipo bem específico do que é ser uma mulher feminista. Ou o que o feminismo branco entende como representação universal do movimento.  

#Girlboss

Koa Beck argumenta que o feminismo se tornou uma marca. E, como toda marca, precisa ter um rosto. Uma imagem que ajude a vender seu produto. Para a jornalista, essa figura é uma mulher branca, heterossexual, cisgênero e economicamente confortável. Beck sugere uma busca por hashtags como #girlboss nas redes sociais para que a figura fique ainda mais nítida para quem lê, mas nem é preciso. Essa imagem já está impregnada no imaginário popular como um ideal do que é ser uma mulher de sucesso no mundo capitalista. 

Nomes como o de Sophia Amoruso, que alcançou a fama como ceo da empresa Nasty Gal, são lembrados por Beck para cravar que esse modelo valorizado pelo feminismo branco nem de longe representa a realidade de tantas outras mulheres que estão na base da economia, ocupando cargos de trabalho desvalorizados — especialmente mulheres racializadas. Ironicamente, Amoruso, que chegou a inspirar uma série para o serviço de streaming Netflix, foi processada em 2015 por demitir quatro funcionárias grávidas. 

Koa Beck resgata na história momentos que demonstram como essa busca por um perfil aceitável do que é ser mulher é um modo de operação do feminismo branco. “As sufragistas embarcaram em seu desafio de construção de marca através da usurpação dos canais da cultura de massa no intuito de refazer sua imagem e transformá-la naquilo que os Estados Unidos, a tradição e o poder valorizavam: branquitude; corpos magros de pessoas sem deficiência; juventude; feminilidade convencional; maternidade de classe média; heterrossexualidade e uma dedicação ao consumismo acima de tudo”. 

Quando sufragistas negras manifestaram interesse em participar da Marcha pelo Sufrágio Feminino de Washington, em 1913, receberam o silêncio como resposta. A ordem dos organizadores era “não dizer absolutamente nada sobre a questão [do negro], para mantê-la fora dos jornais, para tentar fazer com que essa fosse uma manifestação puramente sufragista sem complicações causadas por quaisquer outros problemas”. 

Essa tática de silenciar e excluir não se limita aos Estados Unidos. Ela se repete internacionalmente como herança do colonialismo e do imperialismo, como destrincha Rafia Zakaria em Contra o feminismo branco. Por meio de situações vividas por ela e até de exemplos da cultura pop, como filmes e séries, a advogada explica metodicamente quão sistêmico é o racismo, tendo sido exportado e incorporado em outras culturas.

Zakaria é mãe, paquistanesa, casou-se jovem, mudou-se para outro país para estudar, foi vítima de violência doméstica e se divorciou. O lugar do qual ela fala não é um lugar bem-vindo no feminismo branco. Algo que a própria autora exemplifica ao relatar o desconforto instaurado em rodas de conversas com amigas após ela contar a própria história. Sua tese veio da prática. A linguagem acadêmica empregada para explicar metodicamente seus pontos foi encorpada também por essas experiências. Nesse quesito, a narrativa de Zakaria se aproxima da realidade de muitas mulheres brasileiras, que partem em busca de independência financeira e emocional sem praticamente nenhum apoio numa sociedade que não se importa com elas e lucra caso elas não consigam sair da vulnerabilidade.  

‘As mulheres que são pagas para escrever sobre feminismo e fazem política feminista no mundo ocidental são brancas e da classe média alta’

“Existe uma divisão dentro do feminismo da qual não se fala, mas que se mantém inquieta sob a superfície por anos. É a divisão entre as mulheres que escrevem e falam sobre feminismo e as mulheres que o vivem, as mulheres que têm voz contra as mulheres que têm vivência, aquelas que constroem as teorias e as políticas e aquelas que carregam as cicatrizes e as suturas das brigas. Embora essa dicotomia nem sempre trace uma divisão racial, é verdade que, em sua grande maioria, as mulheres que são pagas para escrever sobre feminismo, que lideram organizações feministas e fazem política feminista no mundo ocidental são brancas e da classe média alta”, escreve Zakaria.

Zakaria e Beck são unânimes ao frisar que a luta feminista foi capitaneada pelo capitalismo, tanto como marca quanto como estilo de vida dentro do modelo desse sistema econômico. “O feminismo branco é um estado de espírito.” A mesma mulher que simboliza o suposto ideal, por sua vez, é incapaz de rever seus privilégios. Consequentemente, não há real compromisso em planejar melhorias coletivas que cheguem até as trabalhadoras com salários mais baixos. O trabalho doméstico é citado pelas autoras como amostra determinante dessa dinâmica. Enquanto uma parcela das mulheres alcançou cargos de liderança, outras seguem sem perspectiva alguma de ter o básico para sua qualidade de vida. “O capitalismo precisa de mão de obra barata para atingir seu melhor desempenho possível”, argumenta Beck em seu livro. 

A pandemia da Covid-19 escancarou essas lacunas. Koa Beck apresenta dados sobre a situação nos Estados Unidos. Em Nova York, as mortes de pessoas negras e latinas causadas pelo coronavírus foram o dobro das mortes de pessoas brancas. Além de uma inevitável divisão por gênero, Beck lembra que as mulheres eram as trabalhadoras essenciais para a manutenção da vida diária, já que a maioria dos cargos era ocupada por elas. E quando considerados raça e gênero, eram as não brancas com a maior probabilidade de realizar trabalhos essenciais e, portanto, foram elas que não tiveram a oportunidade de fazer a quarentena necessária para se proteger contra a doença. 

Chamado para a ação

Para quebrar de vez essa roda esmagadora, tanto Koa Beck como Rafia Zakaria apontam na mesma direção: coletividade. Ambas criticam veementemente o individualismo pregado no feminismo branco, no qual vitórias individuais são celebradas ao passo que ações políticas de amplo impacto não entram nesse radar. Também ressaltam que as mulheres brancas dispostas a contribuir devem reconhecer a hierarquia da qual fazem parte e romper de vez com o plano de dominação da branquitude.

Sem fazerem concessões, as autoras incorporam a retomada de narrativa por pessoas não brancas e se somam a nomes como Audre Lorde, Angela Davis, Kimberlé Crenshaw e Gayatri Chakravorty Spivak — citadas como referências nos dois livros — na elaboração de caminhos para a mudança acontecer. Por elas e por outras mulheres, sejam indígenas, negras, muçulmanas, não binárias, asiáticas, trans, latinas e outras identidades.

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.