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Professor de literatura francês vai do entusiasmo à irritação em crônicas sobre traquitanas do mundo digital

31jul2023

Depois de operar o joelho e passar por alguns meses de fisioterapia, tive de obedecer a uma rotina de exercícios para fortalecer a perna. Só consegui absorver extensões, abduções, aduções e agachamentos graças a uma disciplinada programação de podcasts que baixo nos tocadores e ouço nos meus fones sem fio, via Bluetooth. Em casa, quem costuma lavar a louça sou eu. Para me distrair, comprei um suporte de celular que afixo acima da pia, na altura dos olhos. E assim assisti a algumas séries de cabo a rabo, em aplicativos de streaming instalados no meu smartphone.

Não me considero um entusiasta das novas tecnologias, muito pelo contrário. Resisto a incorporar novos dispositivos na minha vida e, em momentos de mau humor (são muitos), amaldiçoo a informática como se fosse um velho gritando contra as nuvens, fantasiando projetos de lei que restrinjam o uso da internet de usuários com mau comportamento (um pouco como maus motoristas perdem pontos na carteira) ou um passado relativamente recente em que não podíamos ser encontrados sempre o tempo todo em todos os lugares.


Crônicas digitais, coletânea de postagens de Antoine Compagnon publicadas entre 2012 e 2013, lançada pela Editora UFMG

Ainda assim, me resigno pouco a pouco com a esterilidade dessa intolerância e, cada vez mais, me convenço de que alguns gadgets transformaram atividades diárias que antes considerava maçantes. Resta entender em que medida a abstinência do smartphone ou de fones de ouvido pode se tornar tão insuportável para mim quanto a claridade era para os olhos de um Michael Jackson sem seus sedativos. São minhas próteses, tomando emprestada a expressão da mulher do crítico literário Antoine Compagnon para descrever o que ele considerava “todos os utensílios que interponho entre mim e o mundo para tornar a realidade distante”.

São de Compagnon as Crônicas digitais recentemente lançadas pela Editora UFMG, coletânea de postagens publicadas em um blog hospedado no site The Huffington Post entre 2012 e 2013.

Os textos tratam de algumas condições de nossa forma de pensar que não sabemos como surgiram

Francês nascido em Bruxelas, criado na Tunísia, educado nos Estados Unidos e professor de literatura da Universidade Columbia com passagens pela Sorbonne e pelo College de France, o autor é um cidadão global erudito e curioso. E é graças a essas qualidades que ele foi capaz de cunhar esses escritos divertidos, num arco produtivo que começa com um tom auspicioso e termina com uma indisfarçável irritação contra os efeitos colaterais da vida tecnológica.

A época em que as crônicas foram escritas é hoje quase uma pré-história. Pré-Trump, ChatGPT e gemidão do WhatsApp, eram tempos em que ninguém bocejava ao ouvir acadêmicos louvando a revolução que foi a digitalização do acervo da Biblioteca do Congresso Americano. Engenheiro diletante (chegou a iniciar uma graduação na área), Compagnon é uma figura despida de ludismo, aversão às máquinas que, em certas doses, viria a ser quase um imperativo moral anos depois.

E assim o autor nos relembra como Baudelaire desprezava os jornais parisienses do século 19 — para o poeta um chorume do qual ele aspirava se livrar com a mesma ansiedade que alguns de nós sonhamos com um mundo edênico sem as redes sociais. A comparação aparece logo no início do projeto-blogueiro e também quando, ao enaltecer o Kindle, Compagnon ressalta a importância dos livros de bolso para a formação da sua geração, que devorou Sartre e Simone de Beauvoir nos anos 60 graças a edições econômicas que conservadores consideravam um empobrecimento da literatura.

Novas dinâmicas 

Ler essas crônicas não é só um exercício de arqueologia da internet e dos bricabraques eletrônicos de dez anos atrás. É também acompanhar as reflexões que brotam na cabeça de um intelectual na medida em que surgem questões coletivas sobre uma nova dinâmica social, muitas delas ainda sem respostas. Isso é especialmente interessante porque trata de condições da nossa forma de pensar que não sabemos como nem quando surgiram.

Em Geração superficial: o que a internet está fazendo com nossos cérebros, Nicholas Carr explica como alguns aparatos tecnológicos mudaram nosso modo de entender o mundo e expandiram nossa capacidade intelectual. A escrita, por exemplo, libertou a linguagem da memorização individual e introduziu o texto como forma de estruturar nosso raciocínio. Mesmo a maneira como escrevemos (e, portanto, pensamos) muda com a evolução dos suportes. Carr comenta que Nietzsche passou a ter um estilo mais conciso e vigoroso quando começou a usar a máquina de escrever, e Compagnon reporta as observações sobre o Word, feitas por um editor veterano:

Como o computador produz textos continuamente e expansíveis para todos os lados, ele recebe cada vez mais manuscritos disformes e inchados em que faltam tanto organização retórica quanto desenvolvimento orgânico.

Para além disso, a internet, as redes sociais e os gadgets correlatos, por sua vez, constituem uma nova revolução em nossa forma de pensar — multitarefa, esparsa, suscetibilíssima a estímulos e cada vez mais rasa.

A partir da segunda metade do livro, as Crônicas digitais de Compagnon se tornam registros de um professor que, de volta das férias de verão, percebe que alguma coisa essencial está mudando. O desconforto com a didática “emburrecida” das aulas por PowerPoint, a percepção do desuso de formas da língua francesa em detrimento de uma técnica global de escrita, as trapaças de alunos em pesquisas e a aspereza nas discussões virtuais trazem uma dose de desesperança que esmorece o espírito aberto do autor.

“As novidades tecnológicas enriquecem nossa existência, mas também a empobrecem”, escreve a certa altura. “Só se aproveita realmente o digital quando sua mente foi formatada sem ele”, observa em outro momento, citando um colega. Passados mais de dez anos do fim de seu blog, Compagnon segue relativamente ativo no Twitter e no Instagram. Do TikTok, o professor preferiu se preservar.

Quem escreveu esse texto

Antonio Mammi

É editor do Nexo Jornal.