Ciências Sociais,

A água-pura do maracujá

Rituais de coca e de tabaco do povo Hupd’äh revelam um conhecimento xamânico poderoso e poético

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

Círculos de coca e de fumaça é uma primorosa etnografia dedicada às noções de espaço e aos rituais do tabaco e da coca entre os Hupd’äh, um povo falante de língua Maku do noroeste amazônico. Através da descrição detalhada de viagens realizadas com os Hup, Danilo Paiva Ramos apresenta os contornos de um fascinante conhecimento xamânico, capaz de resistir à pressão evangelizadora que tanto marcou a história do alto Rio Negro. Não é para menos: o que convencionamos chamar de “xamanismo” se refere, a rigor, a um vínculo com o território que em muito ultrapassa aquilo que naturalizamos como “humano”.

Montanhas e cavernas que compõem a cartografia do território são consideradas moradas de espíritos e divindades, xamãs muito mais antigos e poderosos que os Hup — que deles tentam se aproximar com suas dádivas e preceitos rituais. A Casa do Trovão, uma dessas serras percebidas como mera paisagem pelos modernos, é, para esse povo, uma “Casa-de-Pedra celeste”, na qual as onças “realizam suas práticas xamânicas” tais como os círculos de consumo de coca e de tabaco que envolvem os xamãs em suas longas conversas noturnas. 

{{gallery#21}}

As traduções dos benzimentos e narrativas míticas que constituem a crônica etnográfica — e que teriam rendido mais se o autor tivesse atentado para a recriação de suas qualidades poéticas, de seu ritmo, de suas quebras de linhas e densidade imagética — evidenciam a espacialidade singular que produz o conhecimento xamânico hup. Não é só na dimensão grandiosa da paisagem que se distribuem as subjetividades com as quais dialogam os xamãs, mas também em outras escalas, como o próprio corpo dos animais. 

É o que vemos neste belo trecho de um benzimento realizado pelo xamã Ponciano: “Vou para a mata e entro na casa do pedaço de tabaco do esquilo pequeno. Entro e fico em pé. Eu falo para o esquilo pequeno, para o esquilo marrom. […] Vou para a mata e entro no corpo das onças pequenas […]. Para dentro dessa onça eu me dirijo, para dentro dos esquilos marrons, para dentro das onças. […] Menciono a água-pura do maracujá pequeno. Com a água-pura do maracujá eu banho a pessoa. Faço-a entrar e deitar em sua rede. Faço com que a rede da pessoa esteja dentro das flores do maracujá. Faço o sopro vital entrar e deitar […]”.

Estrutura e processo

O livro é uma contribuição fundamental para que possamos compreender em que, afinal, consiste o pensamento xamânico, muito distinto do (e negligenciado pelo) que entendemos por pensamento na tradição filosófica moderna. Coca e tabaco, convertidos em meras drogas pelos ocidentais, desempenham aí um papel essencial: “Chupando a coca e o tabaco pela primeira vez, os ancestrais veem o que aconteceu, têm um ‘espírito iluminado’ em suas cabeças. Esses alimentos de origem, substâncias irmãs, são ‘poderes’, forças que mostram os sentidos e fazem a pessoa hup adquirir habilidades para ‘conhecer’”. Na língua Maku, o verbo para “pensar”, “wä’kei”, é composto de dois radicais: “wä”, “ouvir”, e “këi”, “ver”. “Pensar”, explica o autor, “é um processo vital onde se partilha a refeição para seguir visões e falas num movimento mútuo de busca.” 

Paiva Ramos acerta ao mostrar, com uma escrita fluida e precisa, como ação, corpo e pensamento produzem a especificidade dessa forma amazônica de conhecer. Entretanto, sua crítica ao legado estruturalista na antropologia mereceria ser repensada. Ao se fiar excessivamente na teoria da performance de Victor Turner e de outros autores, imagina poder realizar “uma antropologia livre da desumanização dos sujeitos, transformados pelos estudos em portadores impessoais de ‘cultura’”. 

Em Maku, o verbo para pensar, ‘wä’kei’, é composto de dois radicais: ‘wä’, ‘ouvir’, e ‘këi’, ‘ver’

O que se ganha com isso, contudo, é uma reiteração do velho balanço dicotômico moderno (necessidade/contingência, estrutura/evento, inteligível/sensível etc.) que tanto viciou a reflexão antropológica ao longo do século 20. Ao imaginar ser possível “ver o ritual como uma qualidade da ação, e não como uma classe de eventos ou instituições”, o autor reitera um lado da moeda (a contingência) e supõe que Lévi-Strauss, por exemplo, privilegiaria excessivamente o outro (a necessidade). É verdade que Paiva Ramos valoriza contribuições centrais de Lévi-Strauss sobre a lógica das qualidades sensíveis e de seu conceito de transformação — este último insatisfatoriamente compreendido, entretanto, como simples conjunto de “noções abstratas encadeadas”, supostamente incompatíveis com a percepção e ação dos viajantes Hup. 

Ora, a crítica devastadora a Turner elaborada por Lévi-Strauss no famoso “Finale” de O homem nu teria conduzido o argumento para outro lugar. Ali, o antropólogo mostra como o pressuposto da primazia do afetivo sobre o intelectual não passa, na teoria do ritual de Turner e de outros, de uma projeção irrefletida de pressupostos metafísicos modernos. Vale a pena relembrar brevemente o argumento, que traduzo da edição de 1971 da obra: “O ritual não é uma reação à vida, mas sim uma reação ao que o pensamento faz dela. Ele não responde diretamente nem ao mundo, nem mesmo à experiência do mundo; ele responde à maneira pela qual o homem pensa o mundo”.

As operações fundamentais do pensamento ritual esclarecidas por Lévi-Strauss (fatiamento e repetição) são, afinal das contas, as mesmas que Paiva Ramos encontra entre os Hup ao se referir, por exemplo, à “capacidade generativa dos Hupd’äh de recriarem as condições para o crescimento e desenvolvimento da vida pela concepção, pelo pensamento, pela segmentação e pela contiguidade”. Se tais princípios elementares não se fizessem presentes em associação direta com a ação (que, contudo, não os antecede), seria inclusive difícil perceber, no dizer do próprio autor, “as rodas de coca como uma performance, uma sequência reflexiva de ações verbais e não verbais, que possuem estilo, finalidades, retórica, padrão de desenvolvimento e papéis característicos”. Trata, justamente, como diria Manuela Carneiro da Cunha em Cultura com aspas (Cosac Naify), “de algo no gênero do que se costuma chamar de cultura”, ou seja, de “esquemas interiorizados que organizam a percepção e a ação das pessoas e que garantem um certo grau de comunicação em grupos sociais”. 

Círculos de coca e de fumaça mostra como tais esquemas organizadores não se separam da ação ritual realizada pelas pessoas com as quais Paiva Ramos conviveu, conseguindo traduzir de maneira notável seu estilo vigoroso de pensamento. Discussões menores em torno da teoria antropológica em nada alteram a grandiosidade da etnografia. Há elementos de sobra na obra para produzir linhas de fuga para os dilemas epistemológicos modernos. Seu mérito está em mostrar, com rigor e compromisso, os contornos cativantes do conhecimento xamânico dos Hupd’äh, algo tão belo quanto urgente nos dias de hoje. 

Quem escreveu esse texto

Pedro de Niemeyer Cesarino

Antropólogo, escreveu Quando a Terra deixou de falar (Editora 34).

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.