Ciências Sociais,

As feministas que seremos

Dois lançamentos apontam novos caminhos para o feminismo, ampliando suas teorias e práticas políticas

01jun2020

De(s)colonizar o feminismo. Essa é a proposta de dois livros lançados recentemente: Um feminismo decolonial, da francesa Françoise Vergès, que sai pela Ubu Editora; e Pensamento feminista hoje. Perspectivas decoloniais, terceiro volume da coleção organizada por Heloisa Buarque de Hollanda e editada pela Bazar do Tempo. O último traz uma compilação de textos de diversas autoras sobre o tema, assim como imagens de três importantes artistas brasileiras que revisitam temas relacionados à história das mulheres: as feridas abertas do escravismo que literalmente sangram das imagens encarnadas de Adriana Varejão; os bordados e cerzidos de imagens históricas e fotografias de família de Rosana Paulino, revisitando as violências sofridas por populações negras para transformá-las de objetos em sujeitos da própria história; e as grandes telas de Marcela Cantuária, que faz uso do anacronismo para apresentar novos significados das histórias de lutas e resistências das Américas.

O objetivo é ambicioso e necessário. Mas, antes, a escolha do termo decolonial, no lugar de descolonial ou pós-colonial, pede alguns comentários, pois até hoje é tema de debates acalorados nas ciências humanas. De relance, podem parecer termos correlatos usados para marcar os processos pós-independência tanto das Américas quanto das colônias britânicas e francesas nos continentes africano e asiático e fazer uma crítica ao poder colonial, mas acabaram ganhando contornos e pesos diferentes.

O termo pós-colonial se tornou uma área de conhecimento nos anos 1970 a partir de produções de pensadores das mais diversas origens, como Frantz Fanon, Edward Said, Aimé Césaire, Albert Memmi, Kwame Nkrumah, Gayatri Spivak, Stuart Hall e o Grupo de Estudos Subalternos, surgido na década de 1980. Voltados para as colônias africanas e asiáticas, e especialmente para a experiência indiana, o foco desses pensadores residia na crítica ao eurocentrismo e à modernidade em análises discursivas e de representação dos chamados Ocidente e Oriente e em como as identidades pós-independência eram influenciadas por esse contexto histórico.

Diante das ambiguidades presentes na palavra, o conceito foi bastante criticado por teóricos como Ella Shohat, Anne McClintock e Arlik Dirlik, por sua pretensão universalizante e despolitizadora, por passar uma ideia falaciosa de que as relações coloniais já teriam sido superadas e estariam confinadas ao passado sem influência no presente, além de minimizar as estruturas do capitalismo na formação da modernidade. Já o porto-riquenho Ramón Grosfoguel apontou que o termo não leva em conta a experiência colonial latino-americana, pois seria a partir de 1492, com a invasão europeia às Américas, que se consolida a relação modernidade/colonialidade, criando a ideia de superioridade política e de conhecimento do “Ocidente” em relação ao resto do mundo.
Nelson Maldonado-Torres, participante do Grupo Modernidade/Colonialidade, definiu, no final da década de 1990, a noção de giro decolonial, um movimento de resistência política e epistemológica à lógica da modernidade/colonialidade. É o momento da passagem dos estudos pós-coloniais para os decoloniais. Enquanto o colonialismo traz a ideia de uma relação de dominação colonial no âmbito político e econômico de um povo sobre outro, a colonialidade vai além das relações formais de dominação colonial, envolvendo a articulação de relações entre sujeitos calcadas em posições de domínio e subalternidade por um viés racial.

O mesmo acontece quando se diferencia decolonial e descolonial. “A supressão da letra ‘s’ marcaria a diferença entre a proposta de rompimento com a colonialidade em seus múltiplos aspectos e a ideia do processo histórico de descolonização”, explica Heloisa Buarque de Hollanda na introdução do terceiro volume sobre pensamento feminista. Esse mesmo raciocínio é seguido no livro de Vergès. As tradutoras Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo esclarecem que, nas poucas vezes em que a autora fez menção à palavra décolonial, esta foi traduzido por “descolonizar” quando trata dos processos de desligamento das metrópoles das ex-colônias; já “decolonial” foi usado nos momentos em que Vergès se refere ao movimento de libertar pensamentos e práticas da colonialidade. “Tal opção busca enfatizar que os processos histórico-administrativos de descolonização de um território não garantem que os discursos que circulam nele e sobre ele tenham superado a lógica colonial”, sintetizam as tradutoras.

As feministas que somos

Como nos tornamos as feministas que somos?, questiona a dominicana Yuderkys Espinosa Miñoso, no texto “Fazendo uma genealogia da experiência: o método rumo a uma crítica da colonialidade da razão feminista a partir da experiência histórica na América Latina”, um dos melhores da coletânea Pensamento feminista hoje, por condensar de modo contundente as críticas feitas ao feminismo. “A crítica do feminismo negro, de cor e, mais recentemente, decolonial, acabou fazendo, dentro do próprio feminismo, a mesma denúncia que a epistemologia feminista fizera à produção científica ocidental do conhecimento: de que ele é, na verdade, um ponto de vista parcial, encoberto de objetividade e universalidade, já que surge de certa experiência histórica e certos interesses concretos”, resume ela, que faz uma genealogia do feminismo, aliando-o à sua experiência pessoal de não se sentir inteiramente contemplada nem pelo movimento feminista nem pelo negro.


‘Juana Azurduy’ (2018), de Marcela Cantuária [Divulgação]

A noção de um feminismo decolonial surge em 2008 com o ensaio “Colonialidade e gênero”, da argentina María Lugones, que insere a categoria gênero no pensamento decolonial. Para a autora, cujo texto fundacional está presente na coletânea, o sistema de gênero aparece quando a dicotomia fundadora colonial é instaurada: a classificação entre o humano (o europeu colonizador) e o não humano (o indígena colonizado e, posteriormente, o africano). A categoria não humano vê seres humanos como animais e primitivos, sem nenhuma atribuição de gênero. Lugones destaca exatamente essa ausência, mostrando como o gênero é um dos elementos que estruturam a colonialidade e que não faz parte das relações pré-coloniais. O feminismo decolonial denuncia como a heteronormatividade, o racismo e o capitalismo estão estruturalmente imbricados. 

O essencialismo do feminismo foi criticado por feministas negras dos EUA e por Lélia Gonzalez

Essa vertente faz uma crítica ferrenha a feminismos hegemônicos, como o “branco” e liberal. Primeiramente, por seu caráter essencialista ao universalizar a categoria “mulher”, tomando como parâmetro mulheres brancas da burguesia de classe média, não levando em conta outras experiências e desafios que perpassam mulheres de raças, classes, sexualidades, nacionalidades e religiões distintas . Depois, por individualizar lutas que deveriam ser coletivas para mudar estruturas que mantêm desigualdades sistêmicas. Da mesma forma, critica a separação entre teoria e prática política, mostrando alternativas para se pensar a partir de uma prática, até mesmo vindo de mulheres ou coletivos que não se definem como feministas — termo esse visto por determinados grupos como algo ligado às classes brancas burguesas.

O caráter essencialista já havia sido criticado pelo feminismo negro norte-americano e também pela brasileira Lélia Gonzalez, cujo breve mas importante “Por um feminismo afro-latino-americano” abre Pensamento feminista hoje. Angela Davis, em sua vinda ao Brasil em outubro do ano passado, destacou a importância de os brasileiros se voltarem para autoras nacionais, como Gonzalez, que, segundo ela, já falava de interseccionalidade quando esse termo ainda não havia sido criado. O texto presente na coletânea é um bom ponto de partida para entender a importância dessa intelectual brasileira não só para o movimento de mulheres, mas principalmente para o movimento negro.

A própria categoria de gênero é desnaturalizada por Lugones e pela nigeriana Oyèrónké Oyěwùmí. De acordo com a primeira, não haveria nas sociedades indígenas das Américas a ideia de “patriarcado” antes da chegada dos europeus, o mesmo acontecendo com as sociedades iorubás da África ocidental antes do contato europeu. No entanto, a boliviana Julieta Paredes Carvajal traz, com seu feminismo comunitário, uma outra visão sobre o tema nas Américas. Ela afirma que já havia características de dominação patriarcal nas sociedades andinas, defendendo, assim, a visão de que as mulheres indígenas deveriam se libertar duas vezes por serem vítimas de duas opressões: a da sociedade burguesa das elites e a dos homens das suas próprias comunidades. 

A relação com o conceito de gênero não era completamente fixa e dualista, e o gênero não era a principal instância sobre a qual as diferenças nessas sociedades estariam estruturadas. Oyěwùmí mostra como os gêneros na sociedade iorubá são muito mais fluidos que nas ditas “ocidentais”, e que sua estrutura é baseada não na família nuclear mas em linhagens familiares associadas às relações consanguíneas, construídas em torno de um núcleo de irmãos e irmãs, ligados por sangue. Ela e outras autoras defendem, portanto, o uso de categorias específicas para se compreender realidades locais, e não em conceitos importados da Europa que se veem como um padrão que serviria para qualquer sociedade do mundo. 

A cientista política e historiadora Françoise Vergès, no livro-ensaio Feminismo decolonial, chama esse feminismo universalizante de civilizatório ou imperialista, uma vez que as mulheres “ocidentais” se colocam como o padrão a ser seguido pelo resto das mulheres do mundo, seguindo o modelo evolutivo do século 19 na Europa (que também inaugurou propriamente a categoria de raça como um parâmetro pseudocientífico) que via o continente europeu como mais avançado em relação aos territórios coloniais, que seriam atrasados e precisariam da ajuda europeia para atingir seu grau máximo de evolução. Esse feminismo acabaria, assim, contribuindo para a manutenção de um sistema de exploração racial. Nessa obra, ela propõe um feminismo decolonial radicalmente antirracista, anticapitalista e anti-imperialista.


‘Filho bastardo 2 — Cena de interior’ (1995), de Adriana Varejão [Divulgação]

Vantagem epistêmica

Bastante crítica ao feminismo francês, Vergés — que nasceu na ilha da Reunião, a oeste de Madagascar no oceano Índico, dominada pela França, e residiu na Argélia, no México, na Inglaterra e nos Estados Unidos — possui certo “privilégio epistêmico”. Por ter nascido e vivido em colônias francesas e por ter origens não brancas, ela consegue ter o discernimento de olhar para a França (e para a Europa) e perceber como a história dessa nação (e de parte do continente) escamoteia dinâmicas que se prefere deixar obscuras. Ao não incluir os territórios coloniais na história de formação nacional, ao ocultar a presença da escravidão na Europa e minimizar seu papel na construção e expansão do capitalismo, a França procura manter a imagem de si mesma de berço da civilização. Só que essa civilização foi construída sobre o sangue, a riqueza e o trabalho de outros povos. E os intelectuais franceses preferem fechar os olhos diante desse lado da história, contribuindo de alguma forma para a manutenção de determinadas formas de opressão. 

Desse mal também padece o feminismo francês, escreve ela, que acabou sendo cooptado por uma extrema direita que o usa para difundir ideias xenofóbicas, islamofóbicas e de preconceito de classe. A escritora, ativista e especialista em estudos pós-coloniais — ela entrevistou Aimé Cesaire para o livro Nègre je suis, nègre je resterai: entretiens avec Françoise Vergès (Negro eu sou, negro continuarei: entrevistas com Françoise Vergès) — hesitou um tempo antes de se definir feminista (como revelam algumas das autoras de Pensamento feminista hoje). 

Por ter nascido e vivido em territórios coloniais, Françoise Vergès possui ‘privilégio epistêmico’

Ela destaca também o papel essencial que o trabalho doméstico e o de limpeza invisibilizados e feminizados tiveram para a formação e manutenção do capitalismo. No seu argumento, o feminismo precisa ter posições radicais contra o racismo, o capitalismo e o imperialismo, pois não é possível lutar pela própria liberdade em detrimento da liberdade de outras pessoas. Nesse sentido, Feminismo decolonial complementa muito bem Pensamento feminista hoje, trazendo ao debate temas pouco tratados na coletânea, como o trabalho doméstico, a questão religiosa do Islã e a escravidão na Europa como fundacional para o capitalismo e a ideia de civilização europeia.

E, depois de tudo isso, o texto da argelina Marnia Lazreg, “Decolonizando o feminismo (Mulheres argelinas em questão)”, não deixa pedra sobre pedra ao ser bastante crítico aos rumos que os feminismos tomaram. Ao contrário dos demais artigos da coletânea e de Vergès, ela questiona a possibilidade da tradução de uma cultura para outra, ao mesmo tempo que expõe os perigos da “guetização” de feminismos identitários, que se definem ou são definidos como “branco”, “negro”, “argelino” etc. É, no mínimo, saudável o fato de Lazreg discordar de muito do que se vem sendo produzido pelos estudos feministas e, ainda assim, ter espaço em um livro que trata de feminismo decolonial. 

É sinal de que o pensamento feminista vem se sofisticando. Como Kate Kirkpatrick, biógrafa de Simone de Beauvoir, falou em entrevista à edição de abril de 2020 da Quatro Cinco Um: “Há muitos feminismos hoje e eu não acho que eles buscam as mesmas coisas. Mas ao mesmo tempo eu não sei o quanto isso deveria incomodar, porque ao longo da história os homens discordaram sobre qual seria o melhor modo de estruturar a sociedade. Exigir que as mulheres concordem em sua luta parece um parâmetro estranho a ser imposto”.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).