As Cidades e As Coisas,

Voyeurismo doméstico

Livro mostra como questões de gênero impactam a disposição das metrópoles e de seus espaços internos

01fev2024

A história da arquitetura moderna é sistematicamente contada a partir de casas projetadas por homens. A Villa Moller, em Viena, e a Villa Müller, em Praga, são referências do cânone sobre a obra de Adolf Loos. A maison Savoye é a concretização da “casa como máquina de morar” de Le Corbusier — e entendida como síntese dos ideais de abertura, transparência e linhas retas do modernismo. Combinada com a Casa da Cascata de Frank Lloyd Wright, temos pontos inescapáveis aos currículos dos cursos de arquitetura e urbanismo. Beatriz Colomina, arquiteta e professora da Universidade Princeton, revisita essa história tantas vezes repetida em manuais para lê-la a contrapelo. A “historiadora treinada como arquiteta”, como se define, tem problematizado a historiografia da arquitetura e dos espaços urbanos sob uma perspectiva de gênero.


Em Arquitetura, sexualidade e mídia, Beatriz Colomina ressalta a importância de mulheres para a história da arquitetura e urbanismo no Brasil

Arquitetura, sexualidade e mídia traz três de seus textos essenciais e uma entrevista inédita com a autora. Em “A parede cindida: voyeurismo doméstico”, talvez o artigo mais famoso da seleção, a construção do espaço doméstico está no centro da análise. Se habitar é deixar rastros, como afirmava Walter Benjamin, Colomina reproduz essa passagem como pista de investigação: “Poderá existir uma história de detetive do próprio interior, dos mecanismos escondidos pelos quais o espaço é construído como interior?”.

Ao analisar projetos de Loos e Le Corbusier, ela mostra a importância da cultura visual e de diferentes tipos documentais na operação de sublinhar como as questões de gênero têm efeitos sobre as arquiteturas das cidades e a organização de seus espaços internos. Como quem escreve um roteiro de cinema, a autora desenha movimentos de câmera para destacar como o olhar de quem habita se conforma e é organizado no espaço construído. E aqui Colomina tece uma conexão intricada de relações de gênero conformadas no âmbito doméstico.


A Villa Müller, projeto de Adolf Loos [Divulgação]

Para além da contraposição de espaços como o da cozinha, marcador do feminino e do doméstico, e da biblioteca, que reproduzia elementos vindos do espaço público exclusivamente masculino dos clubes, ela mostra como é o olhar que deve nos servir de guia para entender a arquitetura como um “mecanismo de observação que produz o sujeito, [que] precede e emoldura seu ocupante”. Em outras palavras, a arquitetura é entendida como um dispositivo de poder, como regimes de controle dentro da casa.

Na análise, Loos é contrastado com Le Corbusier. Nos projetos de Loos, a janela não é uma ponte para o exterior, mas uma fonte de luz, que volta o olhar para dentro da casa. Vidros opacos, cortinas e objetos que bloqueiam o acesso às janelas direcionam para dentro. A casa é o palco para o desenrolar do drama cotidiano da família. Já na Villa Savoye de Le Corbusier, a conexão com o exterior é estruturante; a janela é, antes de tudo, comunicação: “Se a janela é uma lente, a própria casa é uma câmera apontada para a natureza”. Aqui não há vestígio que remeta ao doméstico ou ao feminino — é uma casa projetada para gerar o efeito de imaterialidade, com sua estrutura elevada que garante espaço para o ar.

Trabalhando da cama

A casa volta a ser destaque em “O século da cama”, em que Colomina é provocada pelo hábito de trabalhar entre os lençóis, antes pertencente aos artistas e intelectuais, acentuado pelas transformações nos formatos de trabalho entre os séculos 20 e 21. A pandemia agravou a relação entre intimidade, trabalho e domesticidade. Antes destinada ao sono e ao sexo, a cama se consolida como anexo do ambiente de trabalho, com o aumento da jornada produtiva realizada de todo lugar, a qualquer momento.

Mas, antes disso, é na cama que Yoko Ono e John Lennon fazem seu protesto pela paz. O maior exemplo de usuário da cama como lugar de viver e trabalhar é Hugh Hefner, fundador da revista Playboy, que inaugurou também uma forma de borrar os limites rígidos entre vida íntima e vida pública. Nossa memória nos trará Hefner sempre de roupão ou pijama, trabalhando de casa, da cama. Se na arquitetura de Loos e Le Corbusier se destacam as cinematografias permeadas pelas hierarquias de gênero, aqui se trata do projeto de uma casa não mais partida, mas inteiramente masculina, como expressão de uma vida moderna amparada na virilidade. Arquitetos e designers se apresentam como experts em traduzir para o projeto a sofisticação associada ao gênero.

Ao buscar rastros e pistas dos diferentes olhares formatados por culturas e registrados por diferentes mídias, a autora expande a definição de arquitetura. A centralidade do olhar em suas reflexões é justamente o que articula arquitetura, sexualidade e mídia, uma vez que os ocupantes desses espaços construídos integram um jogo complexo de visibilidade e invisibilidade a partir do espaço. Quais elementos direcionam nosso olhar? Quem olha e quem é objeto observado?

A arquitetura é entendida como um dispositivo de poder, como regimes de controle dentro da casa

Na entrevista ao final do livro, Colomina denuncia as desigualdades nas relações de gênero naturalizadas por meio da história da arquitetura e do urbanismo e ressalta a importância de mulheres nessa área no Brasil, como Lina Bo Bardi e Carmen Portinho.

Arquitetura, sexualidade e mídia pretende reforçar a relação indissociável dos três elementos com a história do olhar. Ganham centralidade as mudanças no estatuto de quem é visto e quem vê, a reprodutibilidade e difusão das imagens de espaços domésticos, entre outras rupturas e continuidades que nos indicam o caráter historicamente situado e socialmente informado daquilo que se coloca entre nossos olhos e o que vemos. Se o gênero já é, há muito, entendido como categoria em constante negociação no jogo das relações sociais, a operação realizada nos ensaios é a de desnaturalizar a organização dos espaços, seus usos e como os interpretamos.

Mais do que um guia, as reflexões de Colomina indicam a insuficiência da operação de simplesmente incluir novos nomes no panteão outrora ocupado apenas por homens brancos. Articular gênero, sexualidade e o papel das mídias ao campo da arquitetura nos permite situá-lo frente a esses jogos de visibilidade e poder. 

Quem escreveu esse texto

Maíra Rosin

É historiadora e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo. Pesquisa as relações dos excluídos e marginalizados da História com a cidade.

Leonardo Novo

Historiador, pesquisa na Unicamp as articulações entre o pan-americanismo e a arquitetura e urbanismo na América.