As Cidades e As Coisas,

Pioneiro da cidade

Coleção de artigos resgata e consolida reflexões sobre Anhaia Mello, precursor esquecido do planejamento urbano brasileiro

01dez2022 | Edição #64

A primeira coisa que vem à cabeça do paulistano ao ouvir o nome “Anhaia Mello” é a importante avenida da Zona Leste, protagonista do noticiário sobre o trânsito da cidade. Mas quem foi Anhaia Mello, a quem a avenida homenageia? A resposta a essa questão não costuma estar na ponta da língua de arquitetos, urbanistas e outros profissionais que discutem nossas cidades, embora devesse.

Luiz Ignácio de Anhaia Mello (1891–1974) foi um dos pioneiros no campo do planejamento urbano no Brasil, participando do debate público por quase meio século, a partir da década de 20. A São Paulo que ele conheceu quando jovem em quase nada se parecia com a maior metrópole do Hemisfério Sul de sua velhice, mas seus temas de interesse, abordagens e leituras são questões relevantes até hoje.

A São Paulo que conheceu quando jovem em nada se parecia com a imensa metrópole de sua velhice

A bibliografia da história do urbanismo costuma contrastar sua atuação com a de Prestes Maia, prefeito por dois mandatos e autor do Plano de Avenidas, conjunto de propostas de natureza principalmente viária que marcaram o desenvolvimento de São Paulo, priorizando o transporte sobre pneus e viabilizando uma expansão “infinita” da cidade. Na década de 50, opondo-se ao mote “São Paulo não pode parar”, Anhaia Mello defendeu a limitação do crescimento da cidade, sugerindo a desindustrialização da capital e atuando em prol do planejamento urbano em nível regional.

A oposição ao crescimento de São Paulo, adotada por Anhaia Mello, representa uma leitura sobre a natureza e os problemas urbanos no Brasil que influencia e repercute até hoje. Em análises recentes, o pesquisador Bruno Zorek aponta que a década de 50 marca uma ruptura na representação do futuro da metrópole e que a visão pessimista da cidade mobilizada por Anhaia Mello teria se tornado hegemônica nas interpretações sobre São Paulo nas décadas seguintes.

O político já se preocupava com as demandas da urbe e com o controle de seu desenvolvimento

Foi sob esse viés pessimista e, poderíamos dizer, antiurbanista, que Anhaia Mello propôs o projeto que se tornaria a Lei nº 5.261, de 1957, a primeira a estabelecer um limite geral para a verticalização na capital. Objetivava-se evitar o “empilhamento” e a concentração em níveis de adensamento que ele considerava excessivos. Ilustrativo sobre sua postura foi o título da entrevista que Anhaia Mello deu ao Correio Paulistano em 30 de junho daquele ano: “O crescimento conduz São Paulo ao suicídio. Cortiços de luxo os arranha-céus”.

Mas o tema do controle da cidade esteve presente na trajetória de Anhaia Mello em muitas formas e momentos e mostra como suas questões continuam atuais. Ele foi um dos principais defensores da adoção do zoneamento como mecanismo de regulamentação do uso do solo, instrumento agora largamente difundido nas maiores cidades brasileiras, introduzindo parte da discussão norte-americana sobre o tema no país e impactando a organização das atividades referentes ao urbanismo em prefeituras.


Luiz de Anhaia Mello: um pioneiro do urbanismo paulistano consolida as reflexões sobre um dos principais personagens do urbanismo do país

Esses tópicos e seus desdobramentos ao longo do tempo, tanto em termos das ideias de Anhaia Mello como da própria política pública, são abordados a partir de diferentes perspectivas em praticamente todos os capítulos do livro Luiz de Anhaia Mello: um pioneiro do urbanismo paulistano, que pela primeira vez consolida as reflexões sobre um dos principais personagens do urbanismo do país.

O capítulo de autoria de José Geraldo Simões Junior ressalta a atuação de Anhaia Mello em sua juventude, como vereador, antes de se tornar professor da Escola Politécnica de São Paulo e de exercer o cargo de prefeito, e mostra que foi por meio de um projeto de lei de sua autoria que parte dos custos com a urbanização de novos loteamentos foi transferida para os particulares. A partir de um aspecto, à primeira vista pragmático, como os custos de calçamento, Anhaia Mello já demonstrava preocupação com a antecipação das demandas da cidade e com o controle de seu desenvolvimento.

Projeções

As falas e os textos de Anhaia Mello, especialmente aqueles sobre os males do crescimento metropolitano e possíveis soluções, são altamente sedutores. Fácil imaginar que seu programa para o desenvolvimento de São Paulo foi uma alternativa derrotada que poderia ter nos legado um presente mais pródigo em termos urbanos — mas seria também ingênuo.

Se por um lado é preciso levar em consideração que Anhaia Mello foi um personagem extremamente bem-sucedido em sua atuação — diversos aspectos defendidos saíram do papel e impactaram a organização e a prática do urbanismo no Brasil, conforme Claudio Hiro Arasawa e Sarah Feldman sugerem no livro —, por outro, deve-se perguntar quem teria lugar na cidade “limitada” de Anhaia Mello.

O crescimento que incomodava e estaria ameaçando a capital paulista estava ligado à chegada de grandes contingentes migratórios, principalmente da Região Nordeste do país, que caracterizaram nossa urbanização e constituíram a maior parte das periferias metropolitanas. O crescimento, a urbanização e o adensamento sem dúvidas precisam ser problematizados e trazem questões com as quais precisamos lidar enquanto sociedade. Mas também trazem oportunidades. São Paulo certamente poderia ser melhor, mas os caminhos nunca foram simples como podemos pensar ao ler os textos de Anhaia Mello.

Conhecer a atuação e o pensamento desse personagem é importante para quem lida com os temas urbanos, e o livro, organizado por José Geraldo Simões Junior e Heliana Angotti-Salgueiro, tem como um de seus méritos reunir e consolidar reflexões que estavam espalhadas em dezenas de artigos e seminários produzidos desde a década de 90 pelos autores. Refletindo discussões que aconteceram entre os pesquisadores envolvidos em jornadas de estudos sobre Anhaia Mello nos anos de 2015 e 2017, o livro também apresenta elementos até então inéditos, além de apontar para novas questões e caminhos para refletir sobre essa figura por vezes esquecida e, indiretamente, sobre o campo do urbanismo no Brasil.

Quem escreveu esse texto

Tadeu Lara Baltar da Rocha

É mestre em arquitetura e urbanismo pela USP

Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.