As Cidades e As Coisas,

Menos Estado na regulação das cidades?

Alain Bertaud apresenta princípios da economia urbana e defende menos planejamento, mas oferece visão limitada

19jul2023 | Edição #72

Mais da metade da população do mundo e 85% dos brasileiros vivem em áreas urbanas. Não é segredo que quem mora nas cidades convive com problemas graves: desemprego, alto custo da moradia, congestionamentos, mobilidade precária. O urbanista Alain Bertaud aponta culpados diretos: os planejadores urbanos que, ignorantes dos achados da Economia Urbana, impuseram regras arbitrárias ao desenvolvimento imobiliário.

Em Ordem sem design: como os mercados moldam as cidades, o autor propõe apresentar os fundamentos da economia urbana para planejadores e defende uma radical desregulamentação das cidades. Bertaud sugere que as cidades devem ser encaradas como mercados de trabalho, que se beneficiam com a proximidade, a aglomeração e a mobilidade. Passa, então, por tópicos sobre a forma urbana, preços da terra, densidades populacionais, mobilidade e acessibilidade de moradia, apontando caminhos para discutir temas que estão em voga nos debates atuais sobre cidades.

A proposição no plano de fundo é de que o livre mercado, por meio de sua exigência de ajustes de oferta e demanda, seria o mediador adequado para as disputas em torno do ambiente construído das cidades e que, por isso, a atuação do Estado deveria ser significativamente menor. Para o autor, as intervenções lideradas pelos planejadores urbanos, mesmo que bem-intencionadas, produziram resultados negativos. São vistas como desenraizadas da realidade por se basearem em abordagens normativas, em que eles imporiam às cidades seus valores e formas de pensar.

Bertaud superestima a responsabilidade dos planejadores sobre as formas das cidades

O livro tem o mérito indiscutível de introduzir, em linguagem clara, conceitos da economia urbana. O autor apresenta exemplos que dão vivacidade a conteúdos à primeira vista abstratos e traz simplificações de modelo que permitem um vislumbre de sua operacionalização. O capítulo que trata de mobilidade como uma questão de mercado imobiliário é particularmente interessante por conectar áreas de atuação que nem sempre conversam — como engenharia de transporte e o controle de uso e ocupação do solo — e é quando Bertaud é menos taxativo acerca das melhores soluções.

Mas o livro também traz algumas armadilhas. Apesar dos muitos exemplos, Bertaud raramente oferece uma visualização das nuances e limitações de sua abordagem. Dessa forma, embora dedique quase todas as páginas a apresentar modelos e conceitos da economia urbana, aclara especialmente aqueles aspectos que fortalecem sua visão sobre a necessidade de desregulamentação das cidades. Considerações consolidadas do campo dos estudos urbanos sobre as particularidades dos produtos imobiliários, da questão da propriedade da terra e dos vários aspectos que fazem com que não haja uma concorrência perfeita no mercado de habitação são praticamente ausentes.

Contextos 

Arquiteto de formação, o urbanista francês teve atuação internacional no campo do planejamento urbano, sendo importante nome do Banco Mundial na área, mas vive nos Estados Unidos, onde é professor na Universidade de Nova York. Naquele país, regras rígidas de uso e ocupação do solo definem que a maior parte das áreas urbanas só pode ser ocupada por casas isoladas nos lotes e destinadas ao uso unifamiliar. Esse zoning unifamiliar, cuja merecida crítica tem crescido no contexto norte-americano, não encontra paralelos em escala no resto do mundo e está ligado à lógica dos subúrbios, da segregação e do espraiamento baseado no uso do automóvel que caracterizam a urbanização no país. Assim, é preciso cuidado ao fazer transposições para outros contextos urbanos.

Além disso, Bertaud superestima a responsabilidade dos planejadores sobre a determinação das formas das cidades. Equiparar a ação do Estado à prática de profissionais de planejamento talvez faça sentido no contexto de sua experiência pessoal, como um grande consultor internacional, mas pouco reflete a realidade. O lugar da política, o inerente conflito de interesses na produção do espaço urbano e a capacidade de grupos imporem sua agenda no desenvolvimento das cidades passam ao largo da discussão, e alguns discursos urbanísticos, como as propostas do Plan Voisin de Le Corbusier, são utilizados como espantalhos da reflexão e das práticas do campo do planejamento urbano.

Quem escreveu esse texto

Tadeu Lara Baltar da Rocha

É mestre em arquitetura e urbanismo pela USP

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.