Arte,

Um novo jeito de olhar o Brasil

Artista plástico e historiadora apresentam um leitura crítica sobre a formação da sociedade e da cultura nacionais

19abr2023

À primeira vista, O sequestrador de almas, de Dalton Paula e Lilia Moritz Schwarcz, é um livro de mesa. Seja pelo tamanho, seja pelo formato (texto e imagem), um leitor apressado poderia confundir a obra com um objeto de decoração. Essa impressão inicial, todavia, engana. Nada pode ser mais distante deste volume do que pensá-lo como uma obra cujo objetivo é adornar o espaço. O sequestrador de almas pretende oferecer ao leitor um novo aprendizado do olhar, buscando outros sentidos para momentos decisivos da história do Brasil.


O sequestrador de almas, de Dalton Paula e Lilia Moritz Schwarcz

Para tanto, já no prefácio, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz ressalta a importância de “descolonizar a imaginação”. Em que pese o uso da expressão acadêmica, o texto de Schwarcz se destaca não apenas pelo sem-número de referências teóricas (ao longo da obra, de Georges Didi-Huberman a Grada Kilomba, passando por Homi Bhabha e até Judith Butler), mas, essencialmente, por colocar em perspectiva histórias de vida que não foram contadas a respeito dos escravizados. É o caso de Daniel Antônio Araújo, líder de uma revolta quilombola ocorrida no Maranhão oitocentista. Nas palavras de Schwarcz: “negro, quilombola, letrado, ele representa, exemplarmente, como escravizados e escravizadas nunca foram passivos no Brasil, rebelaram-se, manipularam as leis e lutaram sempre pela liberdade”.

Síntese

Vale a pena destacar aqui a proposta da escrita de Lilia Schwarcz. Em certa medida, esta pode ser considerada uma síntese de suas obras anteriores: para interpretar as imagens de Dalton Paula, num exercício de reflexão que se notabiliza pelo nível de sofisticação, ela lança mão de todo seu repertório como pesquisadora — entre outros trabalhos, Schwarcz assina, junto a Flávio dos Santos Gomes e Jaime Lauriano, a Enciclopédia negra (Companhia das Letras), que reescreve e retrata a trajetória de personagens que marcaram o país. Dalton Paula é um dos artistas que assinam os retratos reproduzidos no livro. 

Em O sequestrador de almas, a historiadora descreve as obras do artista brasiliense e lê o que não está dito, preenchendo o vácuo de repertório sobre as imagens dos negros brasileiros. E nesta escrita Schwarcz recupera seu trabalho materializado em outras obras, como Lima Barreto: triste visionário, biografia publicada em 2017 pela Companhia das Letras.

O trabalho de Dalton Paula vai além da criação estética — ou de um acréscimo à paleta de cores

A relação com a biografia de Lima Barreto acontece por duas vias. Num primeiro momento, existe um modo bastante peculiar da autora se inserir no texto. Tal como faz na biografia de Lima Barreto, Schwarcz mostra com o próprio exemplo um modo de descolonizar o olhar. Se no ensaio sobre o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma havia certa presunção — logo desmontada, ao entrar em contato com os lugares onde viveu o escritor, o que aparece logo nas primeiras páginas daquela biografia —, em O sequestrador de almas Schwarcz questiona o artista a respeito da verossimilhança da representação do já citado líder quilombola Daniel Antônio Araújo. O trecho é importante demais, de modo que deve ser reproduzido aqui:

“Você acha mesmo que nosso protagonista [se referindo a Daniel Antônio Araújo] estaria trajado dessa maneira elegante sendo ele um revolucionário do interior do Maranhão?” A resposta não poderia ter sido mais solene e definitiva, “Ele poderia não estar vestido assim, mas é dessa maneira que ele gostaria de se ver representado, depois de tanto tempo”.

Nessa passagem, Schwarcz demonstra como descolonizar a imaginação é um aprendizado. O leitor apreende que a escrita da autora em seus livros mais recentes é também um exercício de descolonização do olhar. Mas há outra conexão possível aqui entre Lima Barreto, Lilia Schwarcz e Dalton Paula: foi o artista que concebeu o retrato do escritor que o apresenta como negro. Nas palavras de Schwarcz:

O processo criativo era claro; Dalton foi, à sua maneira, sequestrando a alma de Lima. Foi assim adentrando as entranhas do personagem, ‘vestindo os sapatos do morto’, como define Evaldo Cabral de Mello, acerca do ofício do historiador.

Nostalgia e dor

A historiadora destaca que o trabalho de Dalton Paula vai além da criação estética — ou de um acréscimo à paleta de cores. Tem a ver, isso sim, com a maneira como o artista revisita personagens, espaços físicos e lugares imaginados para abrir as portas do castelo da memória. Essa recuperação não virá com nostalgia. Nela, haverá dor e sobrará sofrimento. Em poucas páginas, o leitor compreende que, ao lado do incômodo, vai se apresentar uma tentativa de justiça.

É o caso da imagem de Machado de Assis, personagem incontornável da história cultural do Brasil, uma das maiores personalidades da literatura brasileira dentro e fora do país. Dalton Paula opera o “sequestro” uma vez mais, e o fragmento a seguir é um exemplo de como se dá a trama da análise de Lilia Schwarcz:

Bem aparentado e comportado, o escritor encara firmemente aquele que o observa. Como direito adquirido. Orelhas protuberantes, nariz destacado, bigode diminuindo o volume dos lábios, o Machado de Dalton é bem negro, e traz o peso de sua inserção cultural e social destacada, mas também deslocada socialmente, com o olhar seguro que nos inquere.

Para além da galeria de homens notáveis, O sequestrador de almas reserva espaço para figuras igualmente decisivas no panteão das personalidades brasileiras, e o texto de Schwarcz compõe o bordado que o tecido das imagens apresenta para o leitor. É o caso, por exemplo, de Zeferina e de João de Deus Nascimento. Esses personagens lutaram, cada qual à sua maneira, contra a escravidão. Porque foram personagens silenciadas, o registro de Dalton Paula ganha contornos ainda mais relevantes, de modo a situá-los como referências icônicas nessa nova proposta de imaginação.

Durante muito tempo, certa leitura da história da arte no país deixava de lado as tensões sociais

De igual modo, vale a pena destacar a criação que toma como referência Nilo Peçanha, o primeiro presidente negro do Brasil. Aqui, há um exemplo notável de articulação bem-sucedida entre a obra e o texto. Na obra de Dalton Paula, o que se vê é a potente representação de um homem negro de costas com o brasão da República. Já no texto de Schwarcz, para além da contextualização do personagem retratado, existe a explicação do que está em jogo. Numa escrita que mescla aspectos constitutivos da sociedade brasileira — como a presença do sistema escravocrata, as consequências do racismo e a tática do branqueamento — com as informações da História do Brasil, a autora traz a mais perfeita tradução da “presença de ausência”, um conceito que perpassa toda a obra.

Vale explorar o significado desse conceito, conforme observa Schwarcz:

Na obra de Dalton, as pessoas negras estão sempre representadas: por vezes a partir de seus retratos, por vezes a partir de uma grande ausência expressa pelo silêncio e pelo vazio, ou ainda por objetos que denotam o que chamo de presença de ausência.

Dalton Paula utiliza essa dinâmica ao apresentar um novo sentido para o olhar, sem deixar de lado uma tomada de consciência crítica a propósito do que a sua criação representa para a sociedade brasileira e para os artistas em particular.

Durante muito tempo, certa leitura da história da arte no país deixava de lado as tensões sociais em defesa de um equilíbrio que não guardava relação com os momentos-chave da trajetória deste país como nação — assim como ignorava que alguns de seus protagonistas pertencessem a um grupo que não apenas foi escravizado, mas, também, marginalizado.

O sequestrador de almas é um projeto ambicioso porque, de uma só vez, interfere nesse consenso forjado e usa a própria representação estética para criticar o silenciamento de outras histórias decisivas para a construção do Brasil. Assim, o livro reflete uma tomada de posição dos seus autores que certamente não agradará a quem pretende apenas adornar os espaços vazios da casa.

Quem escreveu esse texto

Fábio Silvestre Cardoso

Jornalista, é autor de Capanema: a história do ministro da Educação que atraiu intelectuais, tentou controlar o poder e sobreviveu à Era Vargas (Record).