Arte e fotografia,

Música dos deuses, música dos inimigos

Um mergulho na sociedade sem chefes dos índios Araweté e seu desejo radical de absorver o ponto de vista do outro

07nov2018 | Edição #1 mai.2017

Contam os Araweté que no princípio os homens e os deuses viviam juntos. Um dia, porém, ao ser insultado por sua esposa humana, o deus Aranãmi decidiu ir embora da terra. Tomou seu chocalho e começou a cantar e a fumar. Cantando, fez com que o solo que pisava subisse às alturas. A separação entre céu e terra causou uma catástrofe: privada de suas fundações de pedra, a terra afundou num dilúvio. Alguns deuses seguiram Aranãmi rumo ao céu, outros foram para o mundo inferior. Só dois homens e uma mulher sobreviveram à inundação.

Como explica Eduardo Viveiros de Castro em seu livro, todos os nossos males surgiram dessa divisão: “Bïde, os humanos, são chamados pelos Araweté de ‘os abandonados’, os que foram deixados para trás pelos deuses”. Para o céu foram os maiores animais, as melhores plantas. Lá tudo é perfeito e imperecível: casas, panelas, arcos. No céu ninguém trabalha: é um mundo de festas constantes, e seus habitantes estão sempre esplendidamente pintados, adornados, perfumados.

A descoberta dessa cosmogonia espantosa, por vezes tão próxima das mitologias europeias, é apenas uma das surpresas proporcionadas pela leitura de Araweté, um povo tupi da Amazônia. Destinada ao público leigo, a obra — publicada originalmente em 1992 — surgiu da reelaboração da tese de Viveiros de Castro lançada pela Zahar (Araweté: os deuses canibais, 1986) e vertida pela Universidade de Chicago (From the Enemy’s Point of View, 1992), e que abriu caminho para sua teoria sobre o perspectivismo ameríndio.

O livro de divulgação de 1992 ganha agora uma terceira edição, enriquecido por estudos recentes sobre os índios produzidos por dois orientandos do autor, Camila de Caux e Guilherme Orlandini Heurich. Escrito em linguagem clara e fluente, o volume apresenta também notável beleza plástica porque Viveiros de Castro, além de antropólogo, é também um bom fotógrafo.

Os Araweté só aceitam duas modalidades de canto: a “música dos deuses” e a “música dos inimigos”. Em ambas, tentam ouvir o que o outro tem a dizer

Seus contatos com os Araweté tiveram início em 1981, cinco anos após a “pacificação” da tribo, e se prolongaram até 1992. Eles já conheciam os “brancos” há muito tempo: sua mitologia incluía um espírito chamado “pajé dos brancos”. Mas só começaram a ser notados pela Funai (Fundação Nacional do Índio) em 1969. Os Araweté recusaram as tentativas de contato até que, atacados pelos Parakanã, aceitaram se mudar para um sítio escolhido pela entidade em 1976. A Funai acredita tê-los pacificado, mas os Araweté sustentam que foram eles que “amansaram” os brancos.

“Conviver com os Araweté é uma experiência fascinante”, diz o autor:  “Amigos da proximidade corporal, de uma informalidade por vezes avassaladora, absolutos no dar e no pedir”, são bastante afáveis e divertidos, mas refratários a certas normas ocidentais. O primeiro traço que chama a atenção é a total ausência de chefes, o que dificulta muito o trabalho da Funai, pois a tomada de qualquer decisão exige que os agentes conversem com todos os índios, sem exceção: “Nos Araweté, rapaz, é de um jeito tal que o índio não obedece o outro […]. É uma coisa horrível”.

Essa sociedade horizontal e radicalmente aberta é movida por um “desejo radical” pela alteridade: eles querem ser como o outro e, ao mesmo tempo, tentam moldar o outro à sua imagem.

Sua receptividade à diferença se manifesta em vários planos. Desde que aceitaram a assistência da Funai, nos anos 70, eles adquiriram o hábito de tomar café. Mas converteram esse costume num pretexto para as famílias se visitarem à manhã e à tarde, para bater papo e saber as novidades. Também aprenderam a fazer canoas, e agora pescam muito mais. Em 1982, passaram a usar armas de fogo para caçar.

Apesar de todas essas mudanças, a essência de suas tradições permanece a mesma, tanto assim que eles oferecem tais “coisas inimigas” (como o café, o açúcar, as espingardas) aos deuses e aos mortos nas suas cerimônias rituais.

A presença desses elementos importados chama muito a atenção de quem não é indígena, mas os Araweté veem tais aquisições como algo de pouca monta, pois eles apenas estão atendendo os pedidos feitos pelos mortos.

Tal abertura para o outro se enraíza em sua visão de mundo: embora os Araweté não sejam pessimistas nem catastrofistas, acreditam que os homens só conseguirão superar sua atual condição de abandono se escutarem o que seus deuses e inimigos têm a dizer.

Os deuses e os mortos só falam com os homens através da música. Lembrando as prescrições de Platão em sua República (que distinguia a arte destinada aos sábios daquela endereçada aos guardiões), os Araweté só aceitam duas modalidades de canto: a “música dos deuses”, entoada pelos pajés, e a “música dos inimigos”, cantada pelos guerreiros: “Em ambas as modalidades de canto, trata-se sempre de ouvir as palavras dos ‘outros’, deuses e inimigos”.

A música dos inimigos é cantada durante uma festa por um grupo de homens após a morte de um animal ou um guerreiro: o matador canta os cantos ensinados por sua vítima. Já a música dos deuses é entoada pelos xamãs: “O pajé é como um rádio”, dizem os índios. Ele não canta aquilo que quer, é apenas um veículo: "O sujeito da voz que canta está alhures, não dentro do pajé”.

Essa concepção de mundo, contudo, está ameaçada. As terras são constantemente invadidas por madeireiras clandestinas, enquanto missionários fundamentalistas tentam convertê-los à “verdadeira fé”. Mas o maior risco para esse povo talvez resida na torrente de mercadorias despejadas na reserva a título de compensação (pela extração ilegal do mogno, “novo pau-brasil”, em 1989, ou pela construção da usina de Belo Monte, a partir de 2010).

Como diz o autor, os Araweté precisam de tempo: “Nossa sociedade, que provocou a morte de pelo menos um terço de sua população”, agora tem a obrigação de lhes dar as condições “para que eles mesmos definam os termos de seu intercâmbio conosco”.

Quem escreveu esse texto

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.