Arquitetura,

Estética do anonimato

Livro de memórias de Lucio Costa, autor do plano piloto de Brasília, é reeditado depois de mais de vinte anos

28fev2019

É de Lucio Costa (1902-98) a frase que diz que “o Brasil não tem vocação para a mediocridade”. Ideia que ecoa, por afinidade de espírito, e por proximidade cultural, à conhecida boutade de Tom Jobim, segundo a qual “o Brasil não é para principiantes”. Hoje, diante da avalanche de mediocridade que parece dominar não só a política mas o próprio “espírito” do país, nos sentimos imensamente afastados do otimismo altivo daquela geração de artistas e pensadores. Aquela perspectiva emancipadora estaria ultrapassada?

Pode parecer espantoso, mas o “pai” da arquitetura moderna brasileira e autor do plano piloto de Brasília chegou ainda a conviver com rescaldos da experiência da Colônia e do Império em sua vida cotidiana. Nascido em 1902, Costa se lembra de ter sido carregado na liteira por ex-escravos quando menino. Filho de pais brasileiros, nasceu na França e foi educado na Inglaterra, estabelecendo-se definitivamente aqui apenas na adolescência. Como arquiteto, combinando um certo nativismo inglês à obsessão local pela busca de uma identidade nacional, aderiu ao movimento neocolonial, ganhando, ainda jovem, uma posição de destaque. Mas abdicou desse lugar confortável já em 1930, em nome da “boa causa da arquitetura moderna”, que passou a defender de forma aguerrida.

{{gallery#17}}

Inveja do mundo

Na arquitetura, Lucio Costa é o grande personagem de uma geração de artistas que ousou dar o salto para a modernidade. Digo salto porque esse não foi um movimento organicamente gestado, e sim algo abrupto como um salto-mortal. Que partia de um país rural, atrasado e escravocrata, e levava quase que imediatamente ao país moderno de Pelé, Tom Jobim e Oscar Niemeyer, criando uma arquitetura que se tornaria, na expressão do crítico britânico Reyner Banham, “a inveja do mundo”. Discreto, quase invisível, e desconhecido do público em geral, Lucio Costa é um dos maiores artífices desse salto. E o seu livro de memórias, que agora é relançado pela Editora 34 em parceria com a Edições Sesc São Paulo, depois de mais de vinte anos esgotado, é a grande narrativa desse processo.

Lucio Costa: registro de uma vivência reúne textos de diversas naturezas. Em suas 656 páginas estão combinados relatos pessoais, cartas, memórias, textos de intervenção, polêmicas, manifestos e ensaios de fôlego, assim como imagens de seus projetos e obras. O interessante é que, ao atravessarmos todo esse imenso e labiríntico universo de informações, não sentimos nenhum salto abrupto de tom ou mudança de registro discursivo. 

Como ressalta Sophia Telles, em um instigante posfácio acrescentado a essa edição, em Lucio Costa o relato pessoal, quase íntimo, “adquire uma dimensão pública que nos obriga ao distanciamento da leitura impessoal”. Pois a particularidade de sua posição intelectual como artista, ainda segundo Telles, é a de um “ideal de esfera pública enquanto expressão de uma forma de vida”. Isto é, a afirmação da arquitetura como uma “estética do cotidiano”. 

Para além de todo o registro do plano piloto de Brasília, que inclui os croquis e a memória descritiva do projeto, três são os ensaios fundamentais do livro: “Razões da nova arquitetura”, publicado em 1934; “Documentação necessária”, de 1938; e “Muita construção, alguma arquitetura e um milagre”, também conhecido como “Depoimento de um arquiteto carioca”, de 1951. 

Lucio Costa é o grande personagem de uma geração que ousou dar o salto para a modernidade

O primeiro é um manifesto a favor da arquitetura moderna, no qual Costa procura afastar a imagem extravagante dessa arquitetura como um “futurismo” perigoso — um tanto alienígena — tal como se propagandeava no Brasil, e a define uma estética do anonimato, assim como o folclore, porém no mundo industrial. No segundo ensaio, que é considerado um dos documentos de fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN, faz uma leitura do nosso passado em que desloca a importância da arquitetura religiosa barroca para a arquitetura civil, mais austera, “desataviada e pobre”, em suas palavras, e portanto mais robusta e viril. Uma arquitetura tradicional que, no entanto, parecia estar curiosamente próxima da moderna, tal como a que Gregori Warchavchik (1896-1972) vinha construindo. 

No terceiro texto, Lucio traça uma ponte entre a Missão Francesa de Grandjean de Montigny e o modernismo de Le Corbusier, mostrando como a “força viva avassaladora da idade da máquina” tornava obsoleta a experiência tradicional “acumulada nas lentas e penosas etapas da Colônia e do Império”, apagando-lhe até mesmo a lembrança. Daí o surgimento do edifício do Ministério da Educação e Saúde como um “milagre” revolucionário. Não uma mera mudança de cenário, escreve o arquiteto, recorrendo a uma metáfora teatral, mas uma “estreia de peça nova em temporada que se inaugura”. 

Sonho versus realidade

Esse era o país que o crítico Mário Pedrosa dizia estar ao mesmo tempo vocacionado e “condenado” ao moderno. Um país que queria assumir o seu destino de grandeza no mundo e que teve, para isso, a contribuição de uma geração notável de artistas e intelectuais. Esse livro, com sua generosidade lúcida e contida, serve como uma leitura do Brasil a contrapelo do ódio e da estreiteza mental que imperam nos dias de hoje. Pois, muito irônica e sintomaticamente, Lucio Costa é o autor do desenho da Esplanada dos Ministérios, que recentemente vimos dividida por um muro durante a votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff. 

Visitando Brasília em 1987, depois de mais de vinte anos sem pisar na cidade — todo o período da ditadura militar —, Lucio Costa dá um belo depoimento em que declara que quando desenhou o projeto da Plataforma Rodoviária imaginava para ali um cenário meio europeu, com cafés e pessoas de terno e gravata circulando. Mas estando lá trinta anos depois, em meio ao caos turbulento daquele ambiente francamente popular e improvisado, ele admite que aquilo era o Brasil real. E que isso era mais bonito do que o que ele havia idealizado inicialmente. “O sonho foi menor do que a realidade”, conclui.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Wisnik

Arquiteto, é autor de Dentro do Nevoeiro (Ubu).