A Terceira Margem do Reno,

Ep 8. Que sirvam vinho e comida

A alimentação segundo Carlos Alberto Dória e Claude Lévi-Strauss. O mito grego de hospitalidade contado por Goethe. A vida das empregadas caribenhas na França por Françoise Ega e as memórias de Grada Kilomba em Berlim

15fev2023

Está no ar o oitavo episódio de A Terceira Margem do Reno, o podcast de literatura em língua francesa e alemã, feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.

Ouça o episódio aqui:

Composto por nove episódios publicados quinzenalmente, o podcast narrado por Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, e Paula Carvalho, editora de podcasts da revista dos livros, trata da literatura em língua francesa e alemã e suas pontes com o Brasil. O episódio conta com participações de Carlos Alberto Dória, Vinicius Farjalla, Michel Laub, Vanessa Massoni, Marcus Mazzari, Preta-Rara e Yasmin Santos.

Partimos de um dos rios mais importantes da Europa: o Reno, que faz fronteira com a Alemanha e a França, para tratar de temas importantes para o mundo e a literatura. O rio é um ser sem fronteiras, e por isso não vamos nos limitar a elas. Aqui, autores clássicos convivem com os mais contemporâneos, e a única pátria é a língua, a alemã e a francesa, não importando as fronteiras dos Estados nacionais. 

Inspirado pelo título do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, de 1962 (hoje no catálogo da editora Global), o podcast é guiado pela pergunta: onde será que fica A Terceira Margem do Reno? Para além das fronteiras nacionais, temporais e geográficas? Poderia estar na literatura?

Este episódio segue o curso do que nos nutre: a gastronomia, que está muito ligada à ideia de hospitalidade. É também através da culinária que podemos nos sentir em casa e, por isso, o tema das migrações aparece aqui. Iniciamos a jornada na companhia de Carlos Alberto Dória e Claude Lévi-Strauss falando sobre alimentação. Passamos, então, para o mito grego de Baucis e Filemon, que trata da hospitalidade, e foi recontada por Goethe. Em seguida, vamos conhecer memórias de duas imigrantes: a martinicana Françoise Ega, em Paris (influenciada por Carolina Maria de Jesus), e a portuguesa Grada Kilomba, em Berlim.

episódios anteriores do podcast A Terceira Margem do Reno

O pão de cada dia

A comida faz parte do nosso cotidiano, e, para grande parte das pessoas, o ritual da alimentação ajuda a organizar as atividades e a dividir os horários do dia a dia, criando cronogramas para trabalho, lazer e sociabilização. Ao mesmo tempo que a gastronomia pode ser representativa da cultura de uma comunidade, sua existência também é ativa, ou seja, é capaz de modificar os hábitos e, com eles, as tradições de um local. 

O horário das refeições, a escolha dos ingredientes, o modo de preparo, a apresentação estética, a ordem dos pratos servidos, a atenção e o cuidado com a saúde influenciam diretamente a formação de uma cultura alimentar que pode ser reproduzida de geração em geração, e replicada em outros países, dando origem a novas receitas, combinações e inspirações.

Ao lado de grandes teóricos da nossa literatura que se dedicaram a abordar a cultura brasileira, como Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, o sociólogo Carlos Alberto Dória é um dos maiores especialistas dedicado à culinária do nosso país. 

Ele contribui para essa discussão analisando questões ligadas à história dos ingredientes e às características e identidades culinárias. Sua pesquisa mostra, por exemplo, por que a cozinha brasileira tem chamado a atenção de grandes chefs e como ela vem sendo resgatada por restaurantes contemporâneos, nacionais e internacionais, em busca de diversidade e originalidade. 

                
A culinária caipira da paulistânia: as histórias e as receitas de um modo antigo de comer e Formação da culinária brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira, de Carlos Alberto Dória

Em 2021, Dória teve dois de seus livros relançados pela editora Fósforo: A culinária caipira da paulistânia: as histórias e as receitas de um modo antigo de comer e Formação da culinária brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira.

O fogo da vida

A obra do francês Claude Lévi-Strauss, um dos fundadores da antropologia estruturalista, que deu aulas na Universidade de São Paulo nos anos de sua fundação, também aborda a comida em seus livros. Entre 1935 e 1939, em uma de suas viagens ao Brasil, dedicou-se à pesquisa de indígenas brasileiros. 

O autor investigou na tetralogia Mitológicas uma ampla variedade de mitos, encontrando em observações linguísticas e em narrativas populares origens de aspectos culturais com os quais convivemos até hoje. Voltado para a culinária, um dos livros de Mitológicas, chamado O cru e o cozido, republicado pela Zahar, com tradução de Beatriz Perrone-Moisés, analisa a história do fogo como elemento transformador de hábitos e, consequentemente, de culturas. 


O cru e o cozido, de Claude Lévi-Strauss, analisa a história do fogo como elemento transformador de hábitos e, consequentemente, de culturas

Pois o fogo, responsável pela invenção e propagação do processo de cozimento, garante a sobrevida do alimento, em oposição à sua deterioração natural. Essa passagem do cru para o cozido, que, de certo modo, mostra a importância da conquista do fogo pelo homem, é responsável pela profunda transformação nas convenções alimentares.

As viagens, que podem ser pensadas como referência muito próxima da gastronomia, sempre foram grandes impulsionadoras da miscigenação cultural. E são diversos os motivos que, desde a antiguidade, levaram o homem a se locomover, como a procura por novas terras, por alimento, fuga por motivo de guerra, ou por consequências ambientais, sem esquecer, é claro, a diversão e o lazer. 

Com o passar dos séculos, e principalmente por causa da facilidade das viagens e do acesso a voos de longas e curtas distâncias, o trânsito entre países, seja por motivo turístico seja por motivo de imigração, proporciona experiências com culturas estrangeiras, estabelecendo contato direto com elas, das quais a comida é parte central. Por isso, o tema da gastronomia pode ser associado à noção de hospitalidade, que supõe o ato de receber o outro.

O dom da hospitalidade

Para abordar o tema da hospitalidade, retomamos a fábula de mitologia grega de Baucis e Filemon, imortalizada por inúmeros pintores e contada pelo poeta romano Ovídio, em sua clássica obra Metamorfoses


Metamorfoses, de Ovídio, apresenta o mito grego da hospitalidade Baucis e Filemon

Traduzido por Domingos Lucas Dias em versos e com apresentação de João Angelo Oliva Neto, o clássico da literatura latina aparece na edição bilíngue da Editora 34 na sua integralidade, e apresenta o mito grego da hospitalidade Baucis e Filemon comentado no episódio. Na edição 3 da revista dos livros, Pedro Paulo Pimenta resenhou a obra.

Na história, os deuses Zeus e seu filho Hermes se disfarçam de pessoas comuns e simplórias e percorrem o campo em busca de um lar que os acolha com abrigo e alimento. Após buscas fracassadas, as divindades vão parar na cabana de um casal de idosos, Baucis e Filemon, que viviam uma vida comedida, com acesso a poucos recursos financeiros. 


Filemon e Baucis, Rembrandt (1658) National Gallery of Art. [Wikimedia Commons]

Baucis e Filemon prontamente se colocam à disposição de Zeus e Hermes, servindo-lhes vinho e comida. A generosidade do casal, sem precedentes entre os moradores da região, que se revelaram hostis aos visitantes, deixa Zeus sensibilizado. 

Ao perceber que o jarro usado para servir vinho não chega ao fim, Baucis desconfia dos poderes dos hóspedes. Zeus então revela sua verdadeira identidade e pede para que o casal faça um pedido, uma vez que seus planos são os de exterminar a população local com um dilúvio, como castigo por ter negado acolhimento a eles. 

A cabana de Baucis e de Filemon é, então, transformada em templo, e o casal, cujo pedido foi o de não ser separado no momento da morte, é transformado em duas árvores — duas tílias — com as raízes e os galhos emaranhados uns nos outros, simbolizando o abraço do casal mitológico. Na obra de Ovídio temos um desfecho com uma moral forte, em defesa do altruísmo, da generosidade e da simplicidade. 


Fausto, obra-prima à qual Goethe dedicou toda a vida

A narrativa, porém, foi retomada e modificada por Goethe no último dos cinco atos que compõem a segunda parte de Fausto, obra-prima à qual dedicou toda a vida. Só que o poema do autor alemão problematiza a simbologia das tílias, e não a exalta, como faz Ovídio. Na peça, as grandes árvores são um obstáculo a ser superado pelo projeto de colonização de Fausto, protagonista da história, que, nesse trecho da obra, empreende planos de modernização.


Tília cordata [Reprodução]

As tílias, no texto de Goethe, representam não só a nova relação do ser humano com a natureza, mas também a relação dele com os valores daquela sociedade, então postos em questão pelo escritor. Com o avanço sobre a natureza, respondendo a anseios capitalistas de modernização, o ser humano não apenas a modifica, como a todo seu entorno e seu contexto moral e social.


A história foi trabalhada por Marcus Vinicius Mazzari em A dupla noite das tílias: história e natureza no Fausto de Goethe

A história de Baucis e Filemon foi trabalhada por Marcus Vinicius Mazzari, professor de literatura alemã da USP, em seu livro A dupla noite das tílias: história e natureza no Fausto de Goethe, lançado em 2019 pela Editora 34. Mazzari, que já havia aparecido no episódio 7, ganhou a Medalha de Ouro Goethe por sua contribuição ao estudo da obra do autor alemão.

Além do quarto de despejo

Depois de falar de hospitalidade, precisamos, agora, abordar a "migração". Para isso, vamos tratar do livro Cartas a uma negra, de Françoise Ega, escritora e ativista social martinicana. Ega viveu grande parte da sua vida em Marselha, onde conheceu o marido, que também veio das Antilhas francesas, e que foi à França ocupar um posto de militar. 


Cartas a uma negra, de Françoise Ega

Em Marselha, o casal criou seus cinco filhos, e Ega se envolveu em serviços beneficentes com comunidades de imigrantes caribenhos. Ela entrou então em contato com mulheres expostas ao racismo e à exploração do trabalho. A própria Ega se propôs a trabalhar como doméstica como uma espécie de experimento, que foi desenvolvido a partir de relatos reunidos em Cartas a uma negra, publicado pela Todavia com tradução de Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty.

Há um detalhe que serviu de gatilho para a escrita do livro: os textos são cartas endereçadas à brasileira Carolina de Jesus. Na França, a obra de Carolina de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma favelada, foi traduzido por Violante do Canto e publicado em 1962 (como Le Dépotoir), momento em que saiu uma matéria dedicada a ela na revista francesa Paris Match. Ega tomou conhecimento de Carolina de Jesus por essa matéria.


Edição francesa de Quarto de despejo

O livro de Ega foi resenhado por Fernanda Miranda na Quatro Cinco Um, que também publicou como foi o processo criativo do artista nigeriano Peter Uka para criar a pintura que compõe a capa dele


Carolina Maria de Jesus na capa da edição 48. Arte de Kika Carvalho

A revista dos livros deu destaque a Carolina Maria de Jesus na capa da edição 48 com ilustração de Kika Carvalho. Há textos de Stephanie Borges, Tom Farias e Yasmin Santos — os dois últimos participaram de um episódio do podcast 451 MHz sobre a autora. Santos também fez as leituras do livro de Françoise Ega para o episódio. Paulo Roberto Pires já havia tratado da escritora em sua coluna, assim como Marise Hansen, que escreveu sobre ela e Clarice Lispector.


Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada, de Preta-Rara

A cantora, compositora e escritora Preta-Rara, que lançou Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada pela Letramento, participa do episódio falando da importância de Carolina em sua vida. Ela já havia participado do podcast 451 MHz, ao lado da cineasta Anna Muylaert.

Racismo cotidiano

Do lado da Alemanha, temos a psicóloga, escritora e artista portuguesa Grada Kilomba, que vem tendo um reconhecimento mundial notável em suas diferentes atividades, inclusive com seu livro Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, publicado pela editora Cobogó, que foi campeão de vendas na Festa Literária de Paraty em 2019. 


Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, foi campeão de vendas na FLIP 2019

Sobre o ato da escrita, ela diz: "Escrever é, nesse sentido, uma maneira de ressuscitar uma experiência coletiva traumática e enterrá-la adequadamente".

Em Memórias da plantação, escrito em alemão e traduzido por Jess Oliveira, que apareceu no terceiro episódio, Kilomba aborda suas vivências pessoais e cotidianas em situações corriqueiras na Alemanha, onde vive. Os exemplos de racismo são inúmeros e na maioria das vezes são velados, escondidos na linguagem subliminar ou no entrave de algum procedimento burocrático. 

O termo "cotidiano" se refere ao fato de que essas experiências não são pontuais. O racismo cotidiano não é um "ataque único" ou um "evento discreto", mas sim uma "constelação de experiências de vida", uma "exposição constante ao perigo", um "padrão contínuo de abuso" que se repete incessantemente ao longo da biografia de alguém — no ônibus, no supermercado, em uma festa, no jantar, na família. 

Para endossar alguns de seus argumentos, Kilomba recorre a outras fontes, como entrevistas com mulheres negras que viveram situações de discriminação. Dona de um estilo muito fino, penetrante e peculiar de escrita, com argumentos veementes e estudos de casos que denunciam a estrutura de uma sociedade refratária à inserção social de imigrantes, Grada apresenta um livro de importância fundamental para a compreensão do racismo.

Segundo ela, "no racismo estão presentes, de modo simultâneo, três características: a primeira é a construção de/da diferença". Em seguida, as "diferenças construídas estão inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos". E, por fim, "ambos os processos são acompanhados pelo poder: histórico, político, social e econômico".

Kilomba foi entrevistada pela editora Paula Carvalho na Flip de 2019 e Isabela Reis escreveu uma resenha sobre o livro.

Sendo assim, ao analisarmos a história da gastronomia, a migração é um tema que não pode ficar de fora, pois está presente na forma como o ser humano se relaciona com outro, com o diferente, seja acolhendo-o (na melhor das hipóteses), tolerando-o, ou, em outro extremo, repelindo aquele ou aquela que não é reconhecido como seu igual.

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A Terceira Margem do Reno é um podcast feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.
Associação Quatro Cinco Um
Direção geral: Paulo Werneck
Direção executiva: Mariana Shiraiwa
Coordenação geral e tratamento do roteiro: Paula Carvalho
Pesquisa e roteiro: Bianca Tavolari, Marcela Vieira, Odorico Leal, Paula Carvalho, Paulo Werneck e Willian Vieira.
Produção: Ashiley Calvo
Edição, sonorização, trilha sonora, finalização e mixagem: André Whoong
Direção de locução: Tiê
Arte: J. Miguel
Design gráfico: Giovanna Farah e Isadora Bertholdo
Distribuição: Rádio Novelo / Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Comunicação: Gabriela Valdanha
Gravado com o apoio técnico do estúdio Rosa Flamingo.
Na ordem, foram lidos os seguintes trechos: “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias, que saiu pela editora Global; O cru e o cozido, de Claude Lévi-Strauss, publicado pela Zahar, selo da Companhia das Letras, com tradução de Beatriz Perrone-Moisés; Formação da culinária brasileira: escritos sobre a cozinha inzoneira, de Carlos Alberto Dória, lançado pela editora Fósforo; Cartas a uma negra, de Françoise Ega, publicado pela editora Todavia com tradução de Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty, e Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, de Grada Kilomba, lançado pela Cobogó e traduzido por Jess Oliveira.