Livro e Leitura,

Manifesto pela leitura

‘Ler nos ensina a falar e nos educa na arte do diálogo’

11out2022

Com pequenas anedotas e curiosidades históricas, Irene Vallejo, filósofa e estudiosa de filologia clássica, refez a trajetória do livro desde os rolos de papiros e pergaminhos até os formatos atuais. Sua busca foi descrita em O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo, publicado no Brasil pela editora Intrínseca, com tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. O ensaio, que ganhou o Prémio Nacional de Literatura espanhol em 2020 e o Prémio Aragón em 2021, tornou-se um fenômeno editorial, traduzido para mais de trinta idiomas.

Enquanto o livro foi tema de O infinito em um junco, o ato de ler foi abordado em um manifesto pela leitura, encomendado a Vallejo pela Federação do Sindicato dos editores da Espanha e inédito no Brasil.

Leia a seguir trechos dessa ode à leitura.

III Arquitetura do cuidado

Ler nos ensina a falar e nos educa na arte do diálogo. “Os livros fazem os lábios”, costumava dizer há vinte séculos o mestre da retórica Quintiliano. Às vezes encontramos nas páginas, prodigiosamente transparentes, ideias e sentimentos que estavam confusos em nós mesmos e, com isso, o ofício de viver nos parece menos caótico. O vocabulário da nossa vida está naquilo que lemos. À nossa maneira, todos somos narradores e precisamos diariamente das palavras certas para contar e para contar-nos, para convencer e encantar aqueles que nos ouvem. 

Por este motivo, quem lê é capaz de externar suas ideias com mais clareza, traduzir suas emoções em palavras, organizar e verbalizar seu percurso de aprendizagem. Como destaca o filósofo Gregorio Luri:

Leitura, escrita e fala são coisas unidas. Por meio da leitura reforçamos o significado das palavras que julgamos entender e aprendemos palavras novas. As crianças quem leem mais falam e escrevem melhor. Nosso fracasso escolar é basicamente um fracasso linguístico. Inclusive em matemática.

Ao longo de mais de duas décadas, a equipe de pesquisa do psicólogo Mark Taylor, da Universidade de Oxford, analisou os hábitos da vida cotidiana de quase 20 mil jovens. Nenhuma atividade praticada fora da escola demonstrou ter uma influência tão poderosa sobre o futuro desses indivíduos como ler por puro prazer. Por isso, o número de livros que uma família possui tem correlação positiva com o desempenho escolar das crianças. E por isso também, as escolas e as bibliotecas são espaços de oportunidade para superar desvantagens, vencer obstáculos e construir-nos.

As histórias despertam emoções: nos envolvemos com elas como se tivessem acontecido conosco. Literalmente. Técnicas de neuroimagem demonstram que quando lemos ou vemos um filme são ativadas as mesmas áreas do cérebro que quando estamos imersos em uma situação semelhante na vida real. As histórias bem contadas invadem a nossa intimidade, liberam sentimentos silenciosos, tocam o nosso coração. Foi o que a jornalista e escritora Laure Adler sentiu quando suas esperanças ruíram após a morte de um filho. No horror dos primeiros meses, Adler pensava que nunca conseguiria se recuperar, mas o destino pôs em suas mãos um romance de Marguerite Duras, encontrado por acaso em uma casa alugada para o verão. Em suas páginas, como escreveu depois, voltou a divisar um amanhã:

A leitura desse romance suspendeu o tempo, me levou a outro lugar. Sei que o livro, ao trocar meu tempo pelo dele, o caos da minha vida pela ordem do relato, me ajudou a recuperar o alento e a vislumbrar um futuro.

Mas ler não apenas nos ensina a superar desequilíbrios e consertar ruínas; também é uma ginástica que protege nossa saúde. Neurologistas vêm descobrindo que a leitura é um dos melhores exercícios para manter a agilidade do cérebro. Quando lemos, entrelaçamos os vimes da percepção, da memória e do raciocínio, e esse entrelaçamento mental freia a degeneração cognitiva. Agora mesmo, enquanto o olhar acaricia e decifra estas letras, por trás do umbral dos olhos o cérebro se eletrifica e se inunda de atividade. Psicólogos recomendam a leitura para reabilitação de danos neurológicos e como método preventivo de Alzheimer e outras doenças degenerativas. Os livros oferecem, para pessoas de todas as idades, uma academia acessível e barata para a inteligência, e só por isso já seria aconselhável incluí-los na instrução a partir da primeira infância e mantê-los por perto ao longo de toda a vida. A leitura é a ebulição dos nossos neurônios, um Big Bang luminoso no interior da mente.

VIII Ferramenta de reconstrução

Atravessamos tempos de crise, de mudança, de incertezas. E justamente nessas encruzilhadas é que precisamos voltar nosso olhar para os livros, para as linhas escritas no passado: não vivemos nada pela primeira vez. Na memória da escrita encontramos as pegadas da experiência humana, que sobreviveu inúmeras vezes a secas, fomes, pestes, traumas e guerras. A antropóloga Michèle Petit estudou a importância da leitura em tempos de desafios coletivos. Depois de 11 de setembro de 2001, quando o audiovisual já era onipresente, houve um aumento do público que frequenta as livrarias de Nova York. A leitura tem sido uma valiosa ferramenta de reconstrução em várias regiões do planeta assoladas pela violência, por graves crises econômicas, pelo êxodo de populações ou por catástrofes naturais. Petit analisa diversas iniciativas em espaços carcerários, em bairros conflitivos, em programas de reabilitação de crianças envolvidas com guerrilhas ou de adolescentes em situação de rua, e o resultado é sempre revelador: os destinatários dessas experiências de leitura “descobriram nos livros a possibilidade de estabelecer uma relação com o mundo que não seja apenas de predação, de domínio ou de utilidade”. Em tempos conturbados, o escrito funciona como repositório confiável das ideias que nos ancoram e nos resgatam.

Filho deste milênio trepidante, nosso imaginário foi colonizado pela velocidade, pelo imediatismo, pela multiplicação. Apaixonados pela aceleração, ficamos deslumbrados com as conexões instantâneas, com os processadores vertiginosos, com o milagre de apertar uma tecla e comunicar-nos no mesmo instante através de distâncias imensas. Mas toda essa tecnologia rápida e fabulosa é filha de uma máquina que trabalha devagar: o cérebro. E o segredo de seu funcionamento refinado é exatamente essa lentidão. As ideias que sustentam nossa racionalidade precisam de tempo, reserva e sossego para se desenvolver. Como escreveu o historiador romano Tácito: “A verdade se robustece com a investigação e a demora; a falsidade, com a pressa e a incerteza.”

Prisioneiros da pressa, deixamos de lado a educação da paciência. Pode-se chamar essa falta de serenidade cognitiva de crise de distração. Guy Debord afirmou que o nosso tempo nos faz ser mais espectadores do que leitores; ou seja, acabamos diluindo a tensão do leitor na entrega do espectador. Ler não é tão passivo quanto ouvir ou ver; é recriação e efervescência mental. Cada qual lê em seu próprio ritmo, modulando a velocidade, internalizando o que quer assimilar, e não tudo aquilo que nos disparam com tanto ímpeto, e em tal volume, que findamos atordoados. Nesta época veloz, os livros surgem como aliados para recuperar o prazer da concentração, da intimidade e da calma. Por isso a leitura pode ser um ato de resistência em um tempo tomado pela informação nervosa e desenfreada.

Carmen Martín Gaite reflete em El cuento de nunca acabar que ler e escrever

… é como postar-se contra a torrente em meio ao que borbota e arrasta, postar-se contra os ventos e as marés, como se em nossos pés houvessem nascido raízes milenares (…), como se estivéssemos num recinto acolchoado e silencioso, ou numa ilha deserta, ou nas muralhas da nossa torre contemplando uma paisagem risonha e aprazível, a salvo da morte, da mudança e da pressa.

Um livro respeita a nossa atenção e nos mantém desconectados das urgências, das notificações e da publicidade. Não tem bateria para recarregar, é resistente e pode ser muito bonito. Não padece de obsolescência programada, porque sua vida útil é de séculos e séculos. Tem som, tem cheiro, pode ser acariciado. O papel convive harmoniosa e pacificamente com suas irmãs feitas de luz, as telas, mas tem uma aura que nós, amantes da literatura, amamos e reconhecemos.

Quem escreveu esse texto

Irene Vallejo