Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Exceções por toda parte

Pensadora francesa demonstra a banalização da excepcionalidade, que justifica e concentra poder

20mar2024
A autora francesa Marie Goupy [Divulgação]

A marca de uma época de crise, segundo Ortega y Gasset, são as incertezas. Quando desvanecem as convicções que sustentam visões de mundo e sentidos das coisas, indivíduos e sociedades questionam suas crenças. “A confusão segue anexa a toda época de crise”, escreveu o filósofo. A crise é uma perda de sentidos cujo sintoma é a desorientação, uma sensação que demanda uma reação imediata. Numa situação assim, se oferece menos resistência às medidas excepcionais, consideradas necessárias para se confrontar o que está supostamente fora da regularidade.

O estado de exceção, de Marie Goupy, resultado de sua tese de doutorado, parte de uma dupla suspeita: de que vivemos numa época de crise e de que o conceito de estado de exceção tem feito sucesso nela. Os exemplos de como essas duas suspeitas se entrelaçam são fartos. A autora lembra o 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, os ataques de 13 de novembro de 2015 na França e a subsequente série de práticas e leis que, segundo ela, teriam suscitado tensão e ações de excepcionalidade.

Se procurasse mais ao sul, Goupy teria mais referências. Segundo a agência Fiquem Sabendo, apenas nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, foram abertos 43 inquéritos policiais baseados na então Lei de Segurança Nacional, vigente no país de 1983 a 2021 e justificada como uma legislação voltada ao enfrentamento de grandes ameaças à nação. O vocabulário da excepcionalidade consta na minuta encontrada na residência de Anderson Torres (ex-ministro da Justiça de Bolsonaro) que mencionava a decretação de “estado de defesa” na sede do Tribunal Superior Eleitoral. Também se encontrava num documento apócrifo descoberto no celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, que detalhava um golpe “dentro das quatro linhas” da Constituição e a declaração de um “estado de sítio” no país.

O discurso da exceção não é novo. Mas Goupy chama a atenção para sua expansão, aceleração e institucionalização em tempos recentes. Parece ter se tornado corriqueiro o número de situações que autorizam a excepcionalidade, de questões econômicas a mudanças climáticas e fluxos migratórios. Medidas de emergência e legislações de exceção estão entre técnicas de governança que justificam e concentram poder.

Elas geralmente estão nas mãos do Executivo, mas também nas do Judiciário, como na Operação Lava Jato. O filósofo italiano Giorgio Agamben soou um dos primeiros alertas para a normalização do estado de exceção na contemporaneidade. Goupy também se ocupa de inquietações semelhantes, mas se guia pela pergunta: por que o estado de exceção? Em vez de associar prontamente a exceção a uma situação de crise, ela mostra como o próprio pensamento de excepcionalidade é uma forma de lidar com a política.

Fabricação de crises

Há eventos críticos que merecem ser qualificados com o substantivo “crise”, tal como uma catástrofe ambiental ou uma pandemia. Marie Goupy se interessa por crises não como eventos, mas como fabricações. Ela está interessada em compreender como se confeccionam “urgências” que possibilitam a adoção de medidas percebidas como “necessárias”.

Um mérito da obra é expor como o conceito de estado de exceção foi construído historicamente para responder a situações percebidas como crises. Enquanto outros trabalhos recuam brevemente ao passado, Goupy retoma a construção histórica do conceito para situar sua contemporaneidade. Sua aposta é que o contexto intelectual e político do surgimento do estado de exceção pode ser revelador não apenas da sua trajetória, mas também do porquê ainda fazer sentido.

Na primeira parte do livro, Goupy se debruça sobre os pressupostos sociais e intelectuais que possibilitam o avanço do conceito no entreguerras e sobre aquele que o construiu, Carl Schmitt. Ela centra sua análise na Alemanha dos anos da República de Weimar e do prelúdio da ascensão nazista.

Schmitt tinha alvos claros e respondia às teses jurídicas liberais sobre os poderes de exceção. O pensador alemão desconfiava tanto dos trabalhadores proletários que se organizavam quanto dos juristas positivistas munidos da retórica de uma “ciência do direito” supostamente neutra de preferências políticas ou morais. Nos debates sobre quem exerce os poderes para enfrentar crises, Schmitt mirava, afinal, o Parlamento. Para ele, a melhor forma de navegar o Estado por mares inóspitos era conferir ao Executivo poderes ditatoriais.

Goupy sugere que a ordem liberal reduz a política a um mecanismo de intervenção ocasional 

No restante do livro, Goupy analisa criticamente a trajetória da construção intelectual de Schmitt sobre o estado de exceção. Segundo o alemão, a crise seria um sintoma da impotência e das contradições das democracias liberais. Se por um lado a elite liberal promete uma ordem baseada no Estado de Direito, com normas neutras e sem preferências políticas, por outro, essa mesma ordem precisa ser mantida por um poder que de fato protege certos valores comunitários compartilhados. Em crises, esse poder se mostra ilimitado em relação ao direito, uma vez que é responsável por salvaguardar a sobrevivência da ordem. As promessas simultâneas de neutralidade e necessidade revelam a contradição da ordem liberal para Schmitt. O liberalismo é, para ele, responsável por gerar crises e, ao mesmo tempo, impotente para enfrentá-las.

A elaboração sobre o estado de exceção é empregada por Schmitt tanto para desnudar a ordem liberal quanto para solucioná-la. Ao contrário do marxismo, também interessado nas crises políticas do liberalismo, mas que constrói sua análise a partir das contradições econômicas, Schmitt produz uma análise sistêmica do liberalismo a partir do que entende ser a negação da política. Contra a despolitização liberal que enfraquece o poder do Estado, Schmitt propõe o estado de exceção como remédio. Conhecemos onde deságua sua produção teórica e preferências políticas: no nazismo.

Schmitt, no entanto, não tem a última palavra. Marie Goupy oferece uma leitura com e contra ele para pensarmos o estado de exceção e sua relação com o liberalismo. Seu argumento é que o estado de exceção schmittiano se propõe a ser uma contraposição à ordem liberal, mas que também pode ser um recurso conciliável com ela. A autora questiona pressupostos e interpretações do alemão sobre a despolitização liberal, a fragmentação da ordem social e a própria a relação entre direito e política, e sugere que o liberalismo tem uma grande capacidade de incorporar e funcionar a partir de crises.

Contra a interpretação de Schmitt, a autora francesa sugere que a ordem liberal reduz a política a um mecanismo de intervenção ocasional. Esse mecanismo, por sua vez, impõe a ordem em um corpo social alheio à política em seu cotidiano. Em suas palavras, “o estado de exceção seria apenas a tradução da impotência autoritária dos Estados liberais em uma ordem estruturalmente despolitizada que eles próprios orquestraram”.

Goupy nos oferece uma visão crítica de como o estado de exceção prolifera não apesar, mas em razão do liberalismo. Considerar sua pergunta passa, portanto, pelo entrelaçamento entre crise, exceção e liberalismo. Ler seu livro no Brasil de 2024, depois de tempos turbulentos e tentativas de golpe, nos convence de sua necessidade e atualidade.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

João Roriz

É professor na Universidade Federal de Goiás.