Direito,

Direito à democracia

Novo centro de pesquisa fundado por intelectuais que arejam o debate jurídico passa a ter espaço mensal na revista dos livros

01mar2020

Liberdade e autoritarismo: por que unir essas duas palavras antagônicas? Talvez porque no Brasil elas não sejam excludentes — ao contrário, são inseparáveis, como indicam a linha do tempo e os textos das páginas seguintes. Nossa história é marcada por um amálgama de liberdade e autoritarismo, inclusive no regime democrático.

Liberdade e autoritarismo formam o acrônimo Laut, Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo, recém-fundado em São Paulo por pesquisadores, professores, juristas e advogados que vêm pondo em questão, na universidade, na imprensa e em outras esferas do debate público, a forma como o direito dialoga com a sociedade brasileira.

Os pesquisadores do Laut não chegaram propriamente a viver sob um regime de exceção: nascidos em fins  dos anos 1970, início dos 80, nos estertores da ditadura militar (1964-85), cresceram e se formaram sob os rituais democráticos, tendo inclusive podido votar aos dezesseis anos. Por que, então, em 2020 o espectro do autoritarismo persiste e vem ganhando terreno no Brasil e no mundo, a ponto de representar uma ameaça a liberdades aparentemente consolidadas?

Para responder a esta e a outras perguntas, a Quatro Cinco Um e o Laut iniciam uma parceria de conteúdo: mensalmente, os pesquisadores vão publicar resenhas, artigos e ensaios e convidar autores para colaborar. A parceria consolida uma colaboração que já vinha ocorrendo entre os editores da revista e alguns dos fundadores do Laut, como Conrado Hübner Mendes e Rafael Mafei Rabelo Queiroz. Ao abrir suas páginas para o Laut, a Quatro Cinco Um amplia o espaço que já dedica ao debate sobre democracia, direitos humanos e liberdades civis no país, além de apoiar a criação de um projeto relevante.

Polo de reflexão

Não faltam exemplos internacionais de centros de pesquisa independentes que se tornaram influentes polos de reflexão, com repercussões políticas, intelectuais e culturais. No Brasil, um exemplo eloquente é o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), criado, não por acaso, nos anos 1970, tempos de autoritarismo e supressão de liberdades.

O Laut vai trazer para a revista pesquisas, debates, infográficos e materiais “em torno do que significa preservar o Estado de Direito e de como identificar ameaças à democracia não só nos episódios mais óbvios, mas também nas práticas cotidianas rotinizadas”, conforme explica Mendes.

A preocupação com a disseminação do “conhecimento jurídico comprometido desde a sua concepção com direitos, diversidade e democracia”, nas palavras de Adriane Sanctis, passa por estratégias de comunicação e produção bem mais dinâmicas que as formas tradicionais da universidade e por parcerias com projetos jornalísticos. O grupo pretende produzir materiais interativos, prepara um podcast e promete organizar debates.

O juridiquês, para o Laut, é língua morta (“o jargão é inimigo da democracia”, afirma Clarissa Gross). A busca de clareza e de novos formatos nada tem a ver com o preconceito antiacadêmico que viceja  no Brasil atual. Todos os pesquisadores do Laut se dedicam primordialmente ao ensino e à pesquisa do direito, e por isso mesmo sabem que boa parte do problema nasce nas próprias universidades. Segundo Luciana Silva Reis, “nossas faculdades de direito apresentam historicamente muitos vícios autoritários. Um dos objetivos do Laut é promover o conhecimento e a pesquisa acadêmica como práticas anti-autoritárias”.

Gross manifesta preocupação em cultivar interlocutores fora da bolha acadêmica. “Não podemos falar apenas para aqueles que compartilham conosco a mesma linguagem e a mesma forma de estruturar e abordar problemas sociais. Esse é um dos nossos desafios.” O Laut vai procurar trabalhar com outros intelectuais acadêmicos para discutir “não apenas os problemas que estudamos, mas também como trocar de forma produtiva com profissionais e cidadãos que não exercem a mesma atividade que a nossa”.

Pesquisas

O Laut está sendo incubado dentro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). As pesquisas iniciais analisam  manifestações de autoritarismo em 2019, no Brasil e no mundo, pelas óticas da crise da democracia e da emergência climática. Os efeitos do autoritarismo sobre políticas de redução da desigualdade racial estão no foco do futuro podcast do Laut.

A equipe ainda trabalha em uma pesquisa sobre liberdade acadêmica. “Planejamos continuar essa linha de investigação que se preocupa com os ataques à liberdade de pensamento, à ciência e ao conhecimento científico. Um dos projetos busca analisar a captura do debate público por campanhas de desinformação no Brasil”, conta Sanctis.

Se a questão é o autoritarismo, por que a ênfase na liberdade? Rafael Mafei Rabelo Queiroz vê a necessidade de fazer contrapontos ao abuso de conceitos derivados da ideia: “O termo liberalismo, por exemplo, acabou empunhado por movimentos que patrocinam discursos e políticas francamente antiliberais, como a censura, a hostilidade à imprensa livre, o patrulhamento dos afetos e da intimidade sexual. Quando pessoas acreditam que iniciativas assim promovem algum tipo de ‘liberdade’, não enxergam o quanto na verdade as oprimem brutalmente”.

Além de Adriane Sanctis, Clarissa Gross, Luciana Silva Reis, Conrado Hübner Mendes e Rafael Mafei, integram o Laut os pesquisadores Bruna Angotti, Felipe de Paula, Luiz Guilherme Paiva e Natália Pires.

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.