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Revista Granta traz Rússia de Púchkin a Putin

De volta às livrarias brasileiras, Granta em Língua Portuguesa retrata uma Rússia de contrastes, entre o humor e a tragédia

27set2022 | Edição #62

A história, na Rússia, poderá ser uma forma de reconciliação ou está condenada ao rancor? A pergunta foi formulada pelo historiador britânico Orlando Figes antes da eclosão da Guerra da Ucrânia, mas segue pertinente seis meses depois do início do conflito – e talvez seja ainda mais urgente.

A escolha da Rússia como tema da nova edição da Granta em Língua Portuguesa, feita ainda em 2021, também precedeu a invasão do país pelo exército de Putin, mas agora se mostra certeira. Os livros, afinal, sempre foram uma porta de entrada para essa sociedade tão fascinante e desafiadora. Que chaves a literatura pode nos fornecer para compreender a Rússia em 2022?

Em sua nona edição, a revista literária volta a circular no Brasil a partir de outubro — mês da Revolução Russa — pela Tinta-da-China Brasil, sob direção editorial de Pedro Mexia (Portugal) e Gustavo Pacheco (Brasil) e direção de imagens de Daniel Blaufuks. A Granta está em pré-venda com preço especial até 10 de outubro: de R$ 90, o exemplar sai por R$ 60 no site da Tinta-da-China Brasil e também em algumas livrarias.

Os editores não enxergam uma identificação entre os atos belicosos de Putin e a história e a força cultural do país.

“A Rússia não se confunde com os regimes que tem em cada momento, ainda que as tentações imperiais e despóticas venham de longa data. Mas não vamos cancelar a Rússia, ao jeito dos pobres de espírito que interditam os romancistas, compositores e cineastas russos, ou até, quem sabe, as bonecas russas e a salada russa”, escreve Pedro Mexia em seu texto de apresentação.

O editor brasileiro da revista aposta na literatura contemporânea como chave para conhecer a herança cultural russa. “A melhor representação desse legado, e também a prova de que ele continua ativo e em expansão, são duas das maiores escritoras russas vivas, inexplicavelmente pouco conhecidas pelos leitores lusófonos: Tatiana Tolstaya e Ludmila Ulitskaya. Seja no brilhante ensaio sobre o pintor Kazimir Maliévitch da primeira, seja no antológico conto da segunda, fica claro que a Rússia ainda tem muito a nos dar”, completa Gustavo Pacheco em seu texto introdutório. Os escritos jogam luz sobre o czarismo, a revolução, o stalinismo, o fim da União Soviética, e também sobre as missões espaciais e as vanguardas artísticas.

Múltiplos perfis culturais e geracionais se misturam na seleção de autores: Elif Batuman, Camila Chaves, Hélia Correia, Clara Drummond, Reginaldo Pujol Filho, Masha Gessen, Ana Matoso, Pepetela, José Pacheco Pereira, António Pescada, André Sant’Anna, Colin Thubron e Amor Towles. Os ensaios fotográficos são de Mauro Restiffe e Mariana Viegas (responsável também pela imagem da capa).

Back in the U.S.S.R.

O continente literário russo é examinado na nova edição da Granta por lentes multifocais: ficção, literatura de viagem, jornalismo, ensaio de crítica literária e história, e também a necessária voz das escritoras russas contemporâneas. Alguns dos textos reativam o longo e fértil diálogo entre a ficção russa e a literatura em língua portuguesa. Entre ficção e não ficção, ora com humor, ora em tom trágico, e muitas vezes numa mescla tipicamente russa entre os dois registros, a Granta mostra uma Rússia mais profunda que a que costumamos ver retratada no noticiário.

Um divertido paralelo entre o Brasil e a Rússia está no texto de André Sant’Anna, que se vale de sua prosa bem-humorada, repetitiva e muito brasileira para falar de uma cultura aparentemente antípoda, mas em muitos aspectos bem próxima da nossa. As repetições e os vícios que marcam a linguagem oral de André Sant’Anna deixam de lado, por um momento, o Brasil e seus tipos humanos, para examinar uma Rússia com olhos irônicos e desabusados.

O humor também é o tom de Elif Batuman em seu “Quem matou Tolstói?”, mescla de ensaio e reportagem publicada na revista The New Yorker que revelou a autora norte-americana de origem turca. Ainda nos tempos de graduação, ela visita a mítica propriedade de Tolstói em Iásnaia Poliana e encontra excêntricos seguidores do escritor, que além de influenciar milhares de autores de literatura inspirou inúmeros místicos e humanistas reunidos em seitas e igrejas na Rússia.

Da New Yorker também vem Masha Gessen, staff writer da revista que se dedica a cobrir a movimentada política russa e que desde 2019 se identifica com gênero não binário. Num texto que amalgama política e afetividade ao melhor estilo russo, Masha rememora em seu texto sua avó, que elu qualifica como “a censora”. Este e outros textos trazem o misto de nostalgia e horror que muitos russos dedicam aos anos de regime comunista.

Até mesmo o czarismo parece despertar saudade. O peso da história é sentido no texto de Orlando Figes, um dos maiores especialistas na Rússia do século 20, que entrevistou pessoas mais ou menos anônimas a respeito da trasladação das ossadas dos Romanov — nove esqueletos — de um bosque no interior para sepulturas dignas de chefes de Estado (e um espalhafatoso funeral
comandado por Boris Ieltsin em 1998, que o historiador Figes narra em primeira pessoa, com humor e olhos de repórter).

Outro observador da Rússia histórica que está presente na Granta é José Pacheco Pereira, grande nome do jornalismo português que em seu texto decanta duas décadas de escritos sobre a Rússia na imprensa, para a qual cobriu os anos da ascensão ao poder de Putin e seu entorno de oligarcas.

O crítico português António Pescada discute em seu texto o autor mais celebrado pelos escritores russos, Púchkin, e discute por que a parte central de sua obra – a poesia – não tem repercussão no exterior comparável à de sua prosa.

Um ponto alto da edição é a participação de Hélia Correia, poeta portuguesa que ganhou o Prêmio Camões e que na revista escreve em primeira pessoa, na voz de ninguém menos que Anna Kariênina. Erótico e erudito, o texto brinca com a tradição literária russa por meio da subjetividade da personagem de Tolstói.

Além de Anna Kariênina, outra personagem forte da cultura russa ganha voz num dos textos da Granta, o do escritor Reginaldo Pujol Filho, que tem como narradora a cadelinha Laika, primeiro animal a orbitar no espaço. Pujol faz parte da jovem brigada de ficcionistas contemporâneos brasileiros na edição da Granta. A carioca Clara Drummond conta uma história de amor entre Moscou e São Paulo.

A literatura pós-colonial de língua portuguesa tem um representante de peso: o grande autor angolano Pepetela, que apresenta um capítulo particular do contato entre a cultura russa e a língua portuguesa. Seu conto narra a viagem à Rússia de um alto funcionário angolano que durante os anos do comunismo nos dois países estudou engenharia em Moscou.

A Granta em imagens
A Rússia contemporânea está mais evidente nos ensaios fotográficos selecionados por Daniel Blaufuks para a edição da Granta. A cada edição, ele seleciona dois ensaios fotográficos de artistas brasileiros e portugueses. “A partir deste número, já restrito, fiz a escolha possível, tentando enquadrar o que seria mais interessante, de um ponto de vista editorial e de um ponto de vista curatorial”, diz o editor de imagem da revista.

Rússia em dois tempos, de Mauro Restiffe, e Tofolaria, de Mariana Viegas, são os ensaios fotográficos da edição — a foto da capa da revista é de Viegas — e trazem imagens das ruas e da intimidade, entre campo e cidade.

Em Rússia em dois tempos, Restiffe apresenta recortes de cenas cotidianas: a movimentação de pedestres e automóveis em uma esquina, enquanto cavalos esculpidos parecem se digladiar; um menino à mesa, compenetrado, assistindo TV; uma mulher de camisola, em frente à cama. Já as cenas de Tofolaria, de Viegas, desenrolam-se em um ambiente rural (assim como no curta-metragem Tofalaria, de Sharunas Bartas e Valdas Navasaitis, de 1986, sobre uma pequena nação Tofalar vivendo na Sibéria), cuja paisagem é composta, basicamente, de montanhas nevadas. Casas, cercas de madeira, cavalos e mãos trabalhando aparecem em primeiro plano.

O primeiro passo para a escolha dos nomes seguiu um critério pragmático, segundo o diretor de imagem, o fotógrafo e cineasta português Daniel Blaufuks: era preciso entender quais fotógrafos brasileiros e portugueses já haviam estado alguma vez na Rússia.

Ao folhear a revista, o leitor perceberá que as fotos não têm nenhum tipo de legenda indicando local ou data, nem textos críticos ou informativos. Esse caminho nunca foi uma opção considerada por Blaufuks, que busca sublinhar a autonomia do discurso da fotografia em meio aos discursos literários dos escritores incluídos na revista. “Os trabalhos fotográficos são contribuições de direito próprio, tal como cada texto publicado, e obedecem apenas a uma ideia de tema, sendo que este é visto por mim não como algo que fecha, mas sim que abre as possibilidades do seu tratamento”, conta. “A fotografia também é literatura, que também é poesia, que também é ensaio.”

A Granta em português
A revista Granta estreou no Brasil em 2012, durante a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, com uma edição que celebrava os melhores jovens escritores do país e reunindo textos de nomes como Antonio Prata, Michel Laub, Tatiana Salem Levy e Vanessa Barbara. Um ano depois, do outro lado do Atlântico, foi lançada, pela Tinta-da-China, a Granta Portugal. Em 2018, as duas revistas se tornaram uma só, com a unificação na Granta em Língua Portuguesa, tendo um editor brasileiro e um português.

A Granta foi fundada em 1889 por estudantes da Universidade de Cambridge e tem em seu histórico o peso de ter revelado nomes como Sylvia Plath e Ian McEwan. Susan Sontag, Milan Kundera e Gabriel García Márquez também passaram por suas páginas. Além da edição britânica, a Granta tem onze edições internacionais: Bulgária, China, Finlândia, Itália, Japão, Noruega, Espanha, Suécia, Turquia, em hebraico e em língua portuguesa.

Neste ano, após um hiato pandêmico de dois anos, a Granta em Língua Portuguesa volta a circular no país pela Tinta-da-China Brasil, com periodicidade semestral. A revista já está em pré-venda e a partir de outubro será vendida em livrarias e também por assinatura.

Em formato de livro, a Granta em Língua Portuguesa é o espaço de fermentação de novas escritas, de novas gerações de autores e da presença dos grandes escritores nacionais e internacionais, sob os cuidados dos editores Pedro Mexia (Portugal) e Gustavo Pacheco (Brasil). A direção de imagem é de Daniel Blaufuks.

Destaque da nova safra de contistas brasileiros, além da Granta, Pacheco vai atuar como editor at large da Tinta-da-China Brasil, coordenando edições de literatura, como a recém-publicada seleção das crônicas de Ricardo Araújo Pereira no livro Estar vivo machuca, um best of do escritor português. Sua primeira coletânea de contos, Alguns humanos, de 2018, ganhou o Prêmio Clarice Lispector da Fundação Biblioteca Nacional.

Pedro Mexia é um dos principais escritores em atividade em Portugal, com uma obra vasta que inclui diários, poesia, crônicas, ensaios e outros textos. Seus livros são publicados pela Tinta-da-China – no Brasil, saiu a coletânea de crônicas Queria mais é que chovesse e os poemas de Contratempo. Mexia é ainda o diretor da coleção de poesia da Tinta-da-China em Portugal, que já lançou poetas como Matilde Campilho e Eucanaã Ferraz.

Destaques 

  • A presença de escritores brasileiros contemporâneos como André Sant’Anna, Camila Chaves, Reginaldo Pujol Filho e Carla Drummond
  • A participação de autores estrangeiros consagrados, como o angolano Pepetela, a estadunidense Elif Batuman e Masha Gessen
  • Autoras que estão despontando no cenário da literatura russa contemporânea, como Tatiana Tolstaya e Ludmila Ulitskaya
  • Os belos ensaios fotográficos da Rússia feitos por Mauro Restiffe e Mariana Viegas
  • A diversidade dos textos, que vão de ensaios críticos sobre tradução e arte construtivista, passando por contos de ficção que tratam de Anna Kariênina, relacionamentos à distância e espionagem durante a ditadura, chegando a um diário jornalístico sobre os conflitos bélicos da região do Cáucaso

Ganchos

  • A ascensão de Putin e os desdobramentos disso na política internacional; o que a história da Rússia diz sobre a atual guerra que o país empreende contra a Ucrânia

Dizem por aí

  • Fundada em 1889 por estudantes da Universidade de Cambridge, a revista revelou nomes como o de Sylvia Plath. Por suas páginas passaram Susan Sontag, Milan Kundera, Gabriel García Márquez e mais

Conversa com

  • O primeiro livro de Gustavo Pacheco, Alguns humanos, reúne onze histórias tão inquietantes quanto arrebatadoras, viajando do Bornéu ao Bronx, de Moçambique a Salvador, da Alemanha ao México, de Pequim a Buenos Aires
  • Queria mais é que chovesse, de Pedro Mexia, traz uma seleção de crônicas em que se destaca a persona pessimista criada pelo autor ao longo dos anos

Trechos

  • “Vejam bem: este livro não acaba na minha morte. Apesar de o meu nome ser o título, eu não tenho honras de personagem principal. A minha história é como que um adorno, um rendilhado de emoções excessivas”, trecho do texto A posse, de Hélia Correia, cuja narradora é Anna Kariênina
  • “Se há coisa que Putin já demonstrou é que é capaz de tudo para reunir poder”, trecho de Diário russo, azeri, georgiano e ucraniano, de José Pacheco Pereira
  • “Fiquei bastante satisfeita com a minha proposta, que intitulei ‘Tolstói morreu de causas naturais ou foi assassinado? Uma investigação forense’, e que incluía uma análise histórica de indivíduos que tinham motivos e oportunidade para assassinar Tolstói”, trecho de Quem matou Tolstói?, de Elif Batuman
  • “Os russos, na televisão, não tinham alma, igual aos nazistas, os peixes e o Partido Comunista Chinês. Na televisão, em preto e branco”, trecho do texto A história da Rússia, de André Sant’Anna

Ficha técnica
Título: Granta em Língua Portuguesa: Rússia (vol.9)
Formato: 14,5 x 21 cm
Páginas: 316
ISBN: 978-65-84835-05-4
Preço pré-venda: R$ 60
Preço de capa: R$ 90

Editora: Tinta-da-China Brasil

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Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.