Política,

Fanon na encruzilhada

Em entrevista, Deivison Faustino fala de seu livro sobre o psiquiatra martinicano que repensou as relações raciais

20abr2022 | Edição #57

O psiquiatra martinicano Frantz Fanon atuou num cruzamento entre psicanálise, existencialismo, pensamento revolucionário e marxismo. Atravessado por essas correntes intelectuais de alta voltagem, serviu-se do arsenal crítico de cada uma delas para reenquadrá-las sob um novo foco, o da luta antirracista e anticolonial. Sua obra vem sendo redescoberta e reeditada no Brasil e em outros países por novas gerações de intelectuais que atualizam a partir de Fanon a urgência do debate racial. Febre em livrarias e feiras de livros universitárias brasileiras, o martinicano ganha um guia de leitura que tanto serve como introdução didática a seu pensamento como abarca uma impressionante fortuna crítica e teia de relações. Organizador de suas obras pela editora Ubu, o psiquiatra Deivison Faustino conversou por videochamada com a Quatro Cinco Um sobre os principais temas tratados no livro.

A que você atribui essa onda contemporânea em torno do Fanon?
O nome onda é bem interessante, porque são várias ondas mesmo. Fanon foi muito lido na década de 60, depois desapareceu, lá pela década de 70 e 80. Com a queda do Muro de Berlim e a perda de hegemonia da perspectiva revolucionária, ele desaparece. Depois, volta com a ascensão do pós-estruturalismo e do pensamento pós-colonial, tem um boom na Inglaterra, depois nos Estados Unidos. E aí não chega a desaparecer, mas fica muito restrito a um circuito bastante acadêmico. Em 2010, 2012, ele volta para o debate público — França, Estados Unidos e Brasil, principalmente. A conjuntura contemporânea colocou na ordem do dia alguns temas que o Fanon já havia debatido, e alguns autores como o Achille Mbembe começam a tensionar o debate, a dizer: olha, isso aqui já foi discutido, tem aqui uma contribuição singular para pensar essas questões. No caso brasileiro, atribuo [a onda Fanon] à presença negra nas universidades, provocada pelas ações afirmativas. Isso foi decisivo para uma demanda por autores negros nas universidades. O Fanon entrou nesse pacote, junto com outros intelectuais negros.

Você não é da geração que entrou via cotas, é um pouco mais velho, né? Enfrentou uma universidade branca, vamos dizer…
Sim. A minha graduação foi na Fundação Santo André, que é um curso de ciências sociais aqui em Santo André (sp). Sou um pouquinho anterior às ações afirmativas. As políticas de ações afirmativas começam em 2005 e eu comecei a graduação em 2001. Não peguei esse período.  Estudei num curso muito progressista, tive uma formação muito sólida em ciências sociais, mas não houve a oferta de nenhum autor negro, de nenhum autor que discutisse racismo, em nenhum momento. Líamos autores que discutiam o racismo, o Florestan Fernandes, o Octavio Ianni, mas não eram os textos deles sobre racismo que a gente lia. A gente lia outros textos, sobre outros assuntos. Não havia espaço para essa discussão. Tive a sorte de ter tido contato com o debate antirracista no movimento negro. Já fazia parte de grupos de estudos, grupos de formação, fora da universidade, e participei de um movimento de criação de grupos de estudos na universidade. A gente lia por conta própria, não era algo que compunha o currículo.

Como o Fanon se situava intelectualmente na época dele, nas ondas intelectuais do século 20?
Esse é um aspecto que eu abordo no livro: a relação do Fanon com o contexto intelectual como uma relação de encruzilhada. Eu me apoio nas discussões afrobrasileiras, na Leda Maria Martins, na concepção de encruzilhada, que pressupõe não só um beco sem saída, mas também um ponto de encontro entre elementos até antagônicos ou contraditórios. O Fanon vive um momento chave da história ocidental, que é o pós-Guerra, ele participa da Segunda Guerra Mundial. Mas depois da guerra vem um processo de lutas de libertação na África e na Ásia, e até em alguns territórios da América, e esses acontecimentos tensionam determinados consensos teóricos no Ocidente. O Fanon é parte desse tensionamento. E isso marca a relação dele com algumas vertentes teóricas hegemônicas na França. Fanon é um autor martinicano, e a Martinica é, até hoje, um território francês. Então ele é formado no contexto intelectual francês. A gente encontra no Fanon uma proximidade com o existencialismo: Sartre, Beauvoir, Merleau-Ponty, Kierkegaard, Jaspers. A gente encontra um diálogo muito próximo com o marxismo. Só que na década de 50 já existe um certo distanciamento em relação ao marxismo professado pela União Soviética. E há no Caribe um marxismo anticolonial, canibalizado, antropofagizado, por intelectuais afro-caribenhos e africanos que vão pensar a questão colonial e racial no interior da luta de classes. E há uma terceira vertente muito importante que é a psicanálise. A gente precisa lembrar que o Frantz Fanon tem formação na psiquiatria francesa do pós-Guerra, do momento em que a psiquiatria estava em crise de identidade, aberta a influências de outras áreas: filosofia, psicologia, ciências sociais. Esses debates abrem a possibilidade de um certo afastamento crítico em relação ao biologicismo. A entrada do Fanon na psiquiatria passa por um diálogo com essas vertentes todas, e é aí que ele encontra a psicanálise. 

Qual é o ponto da encruzilhada que vale a pena mencionar? É que ela não é aleatória, tem um eixo. Essa encruzilhada entre psicanálise, marxismo e existencialismo tem um eixo, que é o movimento da negritude. A grande estrutura sobre a qual o Fanon vai dialogar com essas vertentes é o movimento de negritude. E a guinada político-estética que o movimento de negritude está propondo para o universo francófono naquele momento é deslocar esse lugar do negro de ente maldito para um lugar positivo.

É interessante que o Fanon vai se aproximar do movimento de negritude também marcado por essas três vertentes, o que implica também um trato crítico com a própria negritude, que é sua base. Ele acaba sendo um crítico desses quatro movimentos, apesar de ser influenciado por eles. Isso coloca o Fanon numa encruzilhada, porque é influenciado ao mesmo tempo que faz críticas a todas elas. Isso confunde muito a leitura especializada, a crítica, a recepção, porque às vezes as pessoas não entendem se ele está defendendo ou criticando a negritude, se está defendendo ou criticando o marxismo.

O título espanhol de Pele negra, máscaras brancas é Escucha, blanco. Fanon escrevia pensando num leitor branco? Ele estava escrevendo para os negros? Ou tentou dialogar com a intelectualidade branca?
Escucha, blanco é uma tradução espanhola, publicada em uma Espanha pós guerra civil, que está se identificando com as lutas de libertação africanas como uma luta antifascista. Então o título Escucha, blanco é uma forma de implicar a esquerda crítica nas lutas anticoloniais. Pele negra é um trabalho de conclusão de curso de psiquiatria que está chamando atenção para a dimensão racial do sofrimento psíquico, e está ao mesmo tempo dizendo que a solução para esse sofrimento passa por uma transformação da sociedade, o que implica olhar para a subjetividade tanto negra quanto branca. O Fanon direciona críticas agudas ao branco, sugere que não basta só olhar o negro como objeto das relações raciais. 

O corpo negro é ameaçador aos olhos do branco, causa ou desejo ou repulsa, mas de alguma forma mexe com o inconsciente

Se o racismo cria o negro como um ente maldito da racialização nessa animalização colonial, ele também cria o branco. Aliás, ao criar o negro, o branco cria a si próprio como grupo alienado de si. Porque quando o branco diz “o negro é isso”, ele deixa de se ver naquilo que ele está identificando no negro. Então o branco também é um ente fetichizado e amaldiçoado, criado pelas relações raciais. E o Pele negra nos convoca a olhar para o branco também como objeto das relações. Isso não significa uma simetria nas relações de poder, muito pelo contrário, mas significa que o branco também perde sua humanidade nas relações raciais, não é só o negro.

Se o negro tem complexo de inferioridade, o branco tem complexo de superioridade. Mas esse complexo de superioridade é baseado numa castração, porque o racismo antinegro no colonialismo pressupõe uma divisão racial do trabalho que coloca o trabalho braçal para o negro, para o escravo. O escravo é negro, então você tem uma distribução racial que deposita no negro elementos que são humanos, por exemplo o corpo. A função do escravo é produzir, trabalhar, então o escravo é reconhecido como corpo, porque a separação entre corpo e alma permite reconhecer o senhor como mente, controle, administração. Só que ao transportar simbolicamente o corpo para o escravo, eu deixo de ver o corpo no senhor.

O Fanon vai dizer que é muito fácil pensar no negro como natureza, porque a natureza está ligada ao selvagem, e o selvagem é objeto das relações em uma sociedade que pensa o sujeito na razão. Então você cola o negro no corpo e o branco na razão. Só que a sexualidade está no corpo. A libido está no corpo, o lúdico está no corpo, a criatividade está no corpo.

O resultado dessa fragmentação, que é simbólica, é uma sobrevalorização das habilidades corporais do negro que é mítica, irreal, falsa, e é colonial. Ela dá a entender que o branco é inferior ao negro no que tange ao corpo, cria uma representação social pautada na ideia de que o corpo do negro é superior ao do branco. Essa representação é mortal, faz com que na área da saúde demorem mais em dar anestesia para a mulher negra do que para a mulher branca, achando que aquele corpo é mais forte. Faz com que homens negros consigam mais trabalhos de segurança do que em escritórios, independentemente da sua formação. Faz com que a polícia esteja duas vezes mais disposta a apertar o gatilho em territórios negros do que em territórios brancos. Como psicanalista, o Fanon nos provoca a pensar que tipos de fantasias essa distribuição de prestígio cria no olhar do branco sobre o negro. O corpo negro, quando aparece, é ameaçador aos olhos do branco, causa ou desejo ou repulsa, mas de alguma forma mexe com o inconsciente. Pensar nisso implica discutir o branco. Para o Fanon, sem discutir o branco a gente não entende as relações raciais. O Fanon esteve ali, junto com o W. E. B. Du Bois e com o brasileiro Guerreiro Ramos, entre os três primeiros autores que vão estudar a branquitude, que para ele é incontornável para entender as relações raciais. 

Como isso se expressa na cultura brasileira? Penso em autores como Gilberto Freyre ou Nelson Rodrigues, que enxergaram esses fetiches corporais, por exemplo. 
É uma pergunta muito interessante, ela tem sido muito discutida. Há um setor muito fértil hoje na psicanálise fazendo essa pergunta. No caso da cultura brasileira a gente teria que olhar para os caminhos históricos, o que necessariamente nos obrigaria a olhar para as influências escravistas e coloniais da nossa composição cultural. A escravidão deixou marcas incontornáveis na cultura brasileira. Uma das perguntas que a gente pode fazer é por que a gente não fala disso. Na psicanálise brasileira existem muito mais estudos sobre o impacto do Holocausto nazista na subjetividade que sobre o impacto da escravidão na subjetividade brasileira. E isso é sintomático. A Lélia Gonzalez vai dizer que isso diz muito sobre as relações raciais brasileiras, baseadas naquilo que ela chama de “denegação”. A gente joga para debaixo do tapete o reconhecimento do trauma, uma saída que não resolve. Aquilo que é jogado para debaixo do tapete retorna. O recalcado retorna como fantasma. Aí a gente pode pensar no momento político que estamos vivendo.

Somos uma sociedade que jogou para debaixo do tapete a escravidão, a ditadura, e eles retornam como fantasmas reais

Somos uma sociedade que jogou para debaixo do tapete a escravidão, a ditadura, o desaparecimento de militantes, uma série de traumas sociais, e eles retornam como fantasmas reais, que têm nos assombrado. A escravidão tem várias dimensões subjetivas que não foram problematizadas. A primeira é a própria experiência vivida. A gente pode imaginar o que era ser separado violentamente do seu laço social a partir do rapto e ser jogado numa sociedade onde você não é gente, não é humano, é um escravo, e isso ser repetido por gerações. E depois ter crianças que nascem nessa relação, durante trezentos anos a gente tem pessoas que não são pessoas. Qual é o impacto disso para a subjetividade dessas pessoas, para uma certa transmissão transgeracional de significados, de símbolos e de imagens a respeito de si e do outro? Mas tem um outro ponto que a professora Eunice Prudente, lendo Gilberto Freyre, nos provoca a fazer, que é pensar o branco também. Se a escravidão brutaliza o negro porque parte do pressuposto de que o negro é um monstro, então para o branco a ética não se aplica. A pergunta que a professora Eunice Prudente faz é: o que era ser branco na escravidão? Quais são os impactos subjetivos de viver numa sociedade em que a violência contra o outro estava autorizada? O Gilberto Freyre traz uma imagem de uma criança — e quando ele fala de criança, é o branco — que recebeu um preto de presente. Imagine.

A sociedade brasileira forjou uma elite delinquente, que não tem limites em relação ao que é privado e ao que é público

Essa criança que recebeu um outro ser humano de presente não precisa acreditar que a violência tem limite, porque o outro não é um outro como ela, é só um objeto. Do ponto de vista do sadismo, da perversão, a gente tem uma sociedade que se estrutura a partir da negação do outro. O racismo não deixa sua marca só no negro, o racismo escravista marca a constituição de uma sociedade onde a violação é parte da norma, não é sequer percebida como violação, porque o outro sequer é um outro como eu. O outro está sempre no lugar de objeto.

Não há existência plena. Até o branco está preso nesse pensamento.
É isso! É isso. Aí eu volto para o Gilberto Freyre, eu defendo que o Gilberto Freyre não deva ser descartado. É um filho da casa-grande e tem que ser lido a partir daí, mas nos diz muito sobre a casa-grande. Ele nos chama atenção em relação a isso: há um certo prazer na dor do outro, um certo sadomasoquismo que perpassa as relações sociais. Só que o problema é que ele mistifica esse processo, até porque está olhando essa relação a partir da casa-grande, e ao mistificar ele isenta a casa-grande desse lugar de poder e trata como se fosse horizontal algo que não é. Então não é que não há possibilidade de escolha nas diferentes castas colocadas na escravidão, a questão é que as relações de poder colocam em outro patamar as possibilidades de escolha. Essa mistificação serve mais aos interesses de justificação da sociedade de classe do que a uma possibilidade de explicar a realidade. Mesmo assim, o Gilberto Freyre é útil para mostrar que há uma particularidade das relações raciais brasileiras quando a gente compara com os Estados Unidos, por exemplo. Nos Estados Unidos não tem essa intimidade que a gente teve no Brasil. E eu acho que o Gilberto Freyre dá elementos para pensar essa intimidade. Ocorre que se a gente não localiza a fala do Gilberto Freyre, a gente romantiza uma violência que está colocada. 

Mas eu queria voltar ao menino que recebeu o moleque de presente, esse menino que recebeu um ser humano de presente, que não precisa ter limites no seu sadismo. Se a gente pensar com o Freud, a criança também é sádica, também é perversa. A violência também nos compõe. Ser socializado é aprender a limitar o nosso impulso para poder conviver em sociedade. Essa criança que recebeu de presente esse outro que a satisfaz, diante de quem ela não precisa ter limites, porque ele é seu brinquedo, sua ama de leite, sua mucama, ela não precisa ter limites diante de seu próprio impulso. A relação entre público e privado fica atravessada por uma perversão original. Quando a gente pensa em delinquência, pensa sempre no menino que rouba o nosso celular no farol, mas de certa forma a sociedade brasileira forjou uma elite delinquente, uma elite que não tem limites em relação ao que é seu, ao que é privado e ao que é público. Uma classe dominante que foi criada, desde o berço, dentro de uma socialização onde o outro, o mundo, é só um objeto de seu próprio desejo. A perversão e a delinquência compõem as classes dominantes brasileiras. A gente poderia dizer que esse menino que recebeu um ser humano de presente depois vira o juiz, ou o procurador que vai fazer vista grossa aos crimes de um presidente porque é do mesmo grupo. Esse menino que recebeu uma criança de presente depois se torna o presidente que vira as costas para quase 700 mil mortos por Covid.

Ou que mantém a empregada escravizada dentro de um apartamento de classe alta, como aconteceu semana passada, em Santos.
Pensar as relações raciais é pensar a radicalidade das violências. Seria muito fácil observar a violência só no Bolsonaro e não perceber essa violência também no pensamento crítico, em relação à sua omissão com o racismo. Por que o pensamento crítico não discutiu o racismo até hoje? Discute agora porque está na parede, encurralado pelo pensamento antirracista. A discussão racial só aparece de forma periférica.

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.