Um mapa até César Aira

Literatura,

Um mapa até César Aira

A (vã) tentativa de elaborar uma espécie de guia para percorrer a vastidão da obra do escritor argentino

01abr2024 • 02abr2024 | Edição #80
César Aira em seu escritório, no bairro de Flores, em Buenos Aires [Alejandra López/Divulgação]

“Existe um ponto de chegada, mas nenhum caminho”
Franz Kafka

Foi no finzinho de 2023, mas a imagem ainda não me saiu da memória. Um casal de aposentados argentinos, numa entrevista para a TV, fala sobre as esperanças diante de uma possível vitória de Javier Milei para a presidência. Abraçado com a mulher, o homem, uns setenta anos, reclama do quanto ganha por mês de aposentadoria, quantia irrisória diante da inflação galopante do país. Ele confessa que pensou até em arrumar um trabalho que complementasse a renda. “Não tem emprego para mim, e nessa idade que estou… e não tem para mais ninguém”, diz, num lamento para o repórter. “Se Milei ganhar, e vai ganhar, vou receber do governo a mesma coisa em dólar”, continuou, num tom inflamado, visceral. Enquanto fala, ele olha para a câmera e para nós, que o observamos do outro lado da tela, talvez assustados com a sua ilusão ferrenha a 200 quilômetros por hora em direção ao abismo.

A máxima diz que a história só se repete como farsa. Mas quando ela insiste em repetir o mesmo enredo, tragédia após tragédia, o que dizer dessa farsa, dessa cópia, já tão desgastada? O que vemos quando a cópia quase se apagou, deixando uma sombra sobre nós?

O escritor argentino César Aira em seu escritório [Alejandra López/Divulgação]

Voltemos um pouco no tempo. A Argentina começa a década de 90 forjando um malabarismo para resolver a profunda crise econômica, que veio como herança da ditadura militar dos anos 70 e 80. O Plano de Conversibilidade cria a paridade entre o peso argentino e o tão venerado dólar. Dá certo por um tempo. Quem não lembra o sorriso à Julio Iglesias do presidente Carlos Menem, quando a roda da fortuna estava a seu favor? Mas a roda girou e girou até a crise de 2001, parando no pedido de moratória do país. O som do caçarolazo do povo faminto ecoa até hoje.

As noites de Flores (Nova Fronteira, 2004) foi o meu primeiro contato com a literatura de César Aira. O resumo do livro, que então aparecia na imprensa, era fulminante na desolação: em meio à crise argentina de 2001, um serial killer começa a atacar os jovens que realizam entregas de moto, durante o período noturno, no bairro portenho de Flores (onde vive Aira até hoje). Dessa vez, e pelo visto só na ficção, um casal de aposentados consegue trabalho para complementar a renda, a partir da seguinte equação: na cabeça de um dono de pizzaria, ninguém prestaria atenção a dois velhos caminhando pela noite afora com pacotes nas mãos. A velhice como atrativo para garantir a jornada precarizada. Com os dois contratados, os fregueses não ficam sem as entregas nem os entregadores sofrem mais perigo. Mas o que parecia ser um livro, na superfície, sobre o pesadelo neoliberal, vira outra coisa, outro corpo, e tudo desmorona a cada novo anoitecer. Nem sei mais hoje se aquele casal de idosos era mesmo um casal de idosos, tampouco se a pizza era só molho de tomate e carboidrato. 

‘Tudo vai sendo improvisado. Olhando para minha carreira hoje, fico tão surpreso quanto os leitores’

Sem qualquer aviso prévio, aprendi no susto que As noites de Flores não era sobre o pesadelo, e sim acerca da lógica do pesadelo, aquilo que, por falta de palavra melhor, chamamos de nonsense. Apesar do momento histórico como regulador da “verdade”, e atrativo inicial do livro para o leitor desavisado, As noites de Flores tem sua força em dissertar sobre o poder do ficcional: você tem um bairro apavorado numa Argentina afundada em crise, mas nada disso parece querer se sustentar por muito tempo. É oco, de papelão. A função da ficção em César Aira é demolir a si própria.

Após As noites de Flores, veio a questão que atormenta todos os que são enredados pela literatura do autor: a falta de um mapa, de algo que nos guie por uma produção intensa e veloz, desde a estreia de Aira, com Moreira, em 1975, e agora formada por mais de cem títulos, que abarcam os mais diferentes gêneros. E mais: os livros foram publicados por casas editoriais de todos os tipos, das tradicionais às alternativas. Só aqui no Brasil, consigo lembrar fácil de uma meia dúzia de editoras que já o publicaram, ainda que sem regularidade ou segurança de novas edições. Parece que, ao mesmo tempo, ele está em todos os lugares e em nenhum. César Aira não tem centro.

Numa troca de e-mails, pergunto ao escritor se essa sua diversidade de escolhas editoriais, que tanto já deram o que falar e confundir, não seria uma espécie de performance, algo que estivesse atrelado ao seu próprio trabalho de criação ficcional: “Como todas as vidas, a minha foi se fazendo dia após dia. Fui tratando de aproveitar oportunidades que apareciam, da mesma maneira como procurei evitar os perigos. Se há gente que planeja cada passo do futuro e realiza os planos como planejado, não sou um deles. Do mesmo modo, realizo meu trabalho como escritor: tudo vai sendo improvisado, livro após livro. Olhando para minha carreira hoje, fico tão surpreso quanto os leitores”. 

O Minotauro e o labirinto

A editora Fósforo promete um mapa (ainda que parcial) do universo de César Aira, passando a publicar de forma sistemática o trabalho do autor no Brasil (o que não implica, ressalto, que deixaremos de nos perder em busca de edições inusitadas de seus livros pelas livrarias e pelos sebos, o que faz parte da graça do jogo). Serão dezesseis títulos, distribuídos por quatro anos e traduzidos a quatro mãos, por Joca Wolff e Paloma Vidal. Os primeiros são O congresso de literatura (1997), um dos mais famosos; A prova (1992), talvez o meu favorito, meu ponto de encontro nesse território gigante que é Aira; o endiabrado Atos de caridade (2014); e O vestido rosa (1984), o mais antigo do grupo e uma grande ode ao mal-entendido.

Apesar do susto que levei com o meu primeiro Aira, As noites de Flores, hoje, se tivesse de indicar uma porta de entrada à literatura do autor, seria facilmente A prova, com seu jeito desbocado, meio punk, que pega entre as mãos o lirismo das ruas. Encontro nele uma das minhas citações favoritas de sua obra, que já anotei, fotografei e reli diversas vezes. É a seguinte: 

O amor também admite um rodeio, e só um: a ação. Porque o amor, que não tem explicações, mesmo assim tem provas. É claro que elas não são exatamente uma dilação, porque as provas são a única coisa que o amor tem. E, por mais lentas e complicadas que sejam, também são imediatas. As provas valem tanto quanto o amor, não porque são iguais nem equivalentes, e sim porque abrem uma perspectiva para outra face da vida: a ação.

Pergunto ao próprio Aira o que ele acha da minha indicação de A prova para os iniciantes. Questiono, também, se ele teria alguma espécie de guia de por onde começar a leitura dos seus livros sem que o leitor encontre grandes problemas iniciais, ainda que saiba que o Minotauro surgirá no meio do labirinto: “A escolha por onde começar vai seguir o gosto do leitor, é o que posso dizer. Não consigo definir isso. Se não me falha a memória, com A prova eu quis captar a atmosfera cheia de preconceitos e provocações que pairava no ar de Buenos Aires durante os anos 80. E escrevi essa novelinha com um artifício bem distante da minha própria realidade na época. Escrevi A prova dentro da minha casa, criando meus filhos, lavando os pratos e traduzindo best-sellers gigantes para sobreviver. O que não quer dizer que, por tudo isso, a novelinha não seja menos realista. E o mundinho punk e gay, que havia nas ruas nessa época, e aparece na novela, também é uma construção artificiosa”.

Parece que, ao mesmo tempo, ele está em todos os lugares e em nenhum. César Aira não tem centro

Falar da fragilidade do realismo e da importância do artifício em Aira fez com que me lembrasse da transcrição que li de uma conferência dele, em que esses dois temas foram esmiuçados a partir da história de Aladim. Numa situação de penúria com a mãe, o personagem encontra uma lâmpada mágica, na qual mora um gênio capaz de realizar todos os seus desejos. Em vez de pedir uma enorme quantia em dinheiro, que revertesse o drama familiar, Aladim vai desperdiçando todos os pedidos com provisões de comida que, obviamente, logo acabam. Lemos a clássica história com uma perplexidade diante da opção do personagem, pontua Aira (e muitas vezes lemos Aira da mesma maneira). 

Queremos gritar para que Aladim faça um pedido que, de fato, reverta a situação. Suas repetidas decisões erradas nos causam uma angústia tremenda. Por que ele não enxerga o equívoco? E mais importante: por que sua relação atrapalhada com a magia nos desaponta tanto? A resposta é simples, e por isso não a enxergamos: é difícil compreender qualquer lógica que não seja a nossa. A lógica da atual condição capitalista, quando tudo pode ser resolvido com moedas. A realidade, avisa Aira, é sempre ameaçada pela irrealidade.

[Alejandra López/Divulgação]

“De certa forma, quando escrevo, acho que eu me sinto responsável, ou culpado, em relação aos meus leitores, que se deram ao trabalho de comprar o livro, ou pegá-lo emprestado, e lê-lo, roubando horas de sono ou executando outra atividade mais lucrativa. E então eu quero dar a meus leitores um extra, uma surpresa, algo inesperado o suficiente para compensar a narrativa enfadonha e as extensões descritivas inevitáveis que encontramos enquanto lemos um romance. Devo confessar que os resultados nem sempre me deixaram satisfeito, porque, para a surpresa fazer efeito, às vezes é preciso recorrer ao absurdo ou ao humor infantil”, comenta Aira, em nossa troca de e-mails, sobre o efeito surpresa a rasgar a trama dos seus livros.

Sobre o humor infantil que fala Aira, logo penso em Como me tornei freira (1993), lançado no Brasil pela extinta coleção Otra Língua, da Editora Rocco. Lembro que o que me levou a colocar esse livro no meu mapa de Aira foi o prefácio, assinado por Sérgio Sant’Anna, que escreveu: 

A escrita de César Aira é uma escrita límpida, no entanto embutindo um alto grau de sofisticação e um notável senso de humor que leva o leitor a cenários, situações e personagens insuspeitados que resultam num grande prazer para a sensibilidade e inteligência, no reinado do paradoxo. 

O curioso é que, se fosse hoje escrever sobre Sant’Anna, usaria palavras bem próximas às que ele usou sobre Aira. Ter sido leitor de Sérgio Sant’Anna encurtou meu caminho até Aira.

“Sérgio Sant’Anna foi um escritor que traduzi e conheci pessoalmente quando esteve na Argentina. A minha relação amorosa com a literatura brasileira vem de muito longe, desde a adolescência, quando li Machado de Assis e Guimarães Rosa. À altura deles dois, coloco João Gilberto Noll, com que tenho uma grande identificação. Atualmente, não estou muito por dentro da literatura brasileira. Agora que não viajo mais e meu prazer maior como leitor são as releituras, quero ler pela terceira vez Grande sertão: veredas. Um amigo leu Grande sertão há pouco, e ficamos comentando juntos, o que me acendeu a vontade”, comentou Aira.

‘El Boom’

Escrevo este texto sobre os caminhos até Aira em meados de março, numa semana repleta de notícias sobre a literatura latino-americana. Primeiro, a polêmica sobre o livro póstumo de Gabriel García Márquez, Em agosto nos vemos (Record). Sem ter sido propriamente finalizado por Gabo (um obsessivo na correção dos seus livros), o romance deveria ter sido mesmo publicado? Um debate que tira o foco da qualidade de um livro que chega a nós menos como uma sobra ou mero caça-níquel. O que é assombroso. Em agosto nos vemos encontramos um García Márquez próximo à secura de seus primeiros contos. Parece tanto um adeus como um recomeço. 

Depois, um texto do jornal The Guardian apostava na chegada de um novo boom da literatura da América Latina, pela quantidade de autores do continente na lista de finalistas do International Booker Prize (no caso: a argentina Selva Almada, o venezuelano Rodrigo Blanco Calderón, o brasileiro Itamar Vieira Junior e a peruana Gabriela Wiener).

O site americano The Week compartilhou a mesma visão do inglês The Guardian e apontou que, se o boom dos anos 60, que teve García Márquez como protagonista, foi impactado pelas ditaduras que varreram a América Latina; o possível novo boom teria como pano de fundo o fracasso da guerra às drogas, a crise climática e a ascensão do fascismo, com destaque para Javier Milei e Jair Bolsonaro. É curioso escrever sobre literatura latino-americana em 2024 e ver as palavras “boom” e “Gabriel García Márquez” juntas de novo, como notícias atuais. É como se Macondo nunca nos largasse.

Se houver um novo boom (o que o mercado adoraria), ele deve atravessar o caminho de César Aira, um nome sempre lembrado, com mais ou menos força, nas bolsas de apostas do prêmio Nobel de literatura. Se pensamos hoje em algo como um boom literário latino-americano, pensamos também na ideia de um grande autor latino-americano. E Aira, com sua galáxia gigantesca de livros, talvez seja o que melhor se enquadra na categoria. Ainda que, ao mesmo tempo, pareça indiferente de caber dentro dela. Tem sempre um paradoxo no caminho dele.

‘O romance tem páginas suficientes para que as passagens boas encontrem o perdão para as ruins’

Nossa troca de e-mails aconteceu, no entanto, antes das especulações de um possível novo boom. E também passou longe da bolsa de apostas do Nobel. Eu estava mais interessado em completar meu guia de leituras de sua obra, que tem a famosa indicação de Roberto Bolaño, para quem o conto “Cecil Taylor” é um dos melhores já escritos; e, claro, com a novela El divorcio (2010), que na edição em inglês recebeu um prefácio consagrador de Patti Smith, talvez uma das grandes influencers literárias hoje. O melhor não é ter a obra do argentino toda em perspectiva, e sim ir colando as peças, sem muita pressa.

Outro dos meus livros favoritos de Aira, lido um pouco depois de As noites de Flores, é a coleção de artigos Pequeno manual de procedimentos. Nele, encontro uma definição que me intriga: 

O contista deve conhecer seu ofício, o poeta deve ser original, o romancista deve “alquimizar” a experiência e o ensaísta deve ser inteligente.

Aproveito para perguntar se essa definição de bolso do trabalho do escritor ainda se mantém: “Não me lembro de ter escrito essa passagem. Hoje eu diria de forma diferente. No conto e na poesia há demandas de qualidade que se tornam difíceis de ser atendidas por um escritor hedônico, como é meu caso. E o ensaio é o primeiro passo (ou todo o caminho) ao pedantismo. O romance, pelo menos como eu o pratico, acaba sendo o gênero ideal. Tem páginas suficientes para que as passagens boas possam encontrar o perdão para as passagens ruins. E você pode mudar o assunto e o tom diversas vezes, dependendo do humor do dia, além de aceitar todas as maneiras de remendo. É mais fácil o leitor perdoar o romance”.

Foi bom ter ouvido de César Aira que ele não se lembrava (ou não queria se lembrar) da passagem de Pequeno manual de procedimentos que nunca esqueci. E melhor: que a escreveria hoje de outro modo. Fico imaginando algo como o esquecimento como método de escritura. Ou de perdão. 

Continuo perdido pela vastidão da obra de Aira, e os mapas nem sempre ajudam. É melhor assim.

Quem escreveu esse texto

Schneider Carpeggiani

É editor, jornalista, doutor em teoria literária e curador.

Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.